Romance: São Bernardo 2 – (Fragmento)
Graciliano Ramos
Conheci que Madalena era boa em
demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca
se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida
agreste, que me deu uma alma agreste.
E, falando assim, compreendo que perco
o tempo. Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que
serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever.
Quando os grilos cantam, sento-me aqui
à mesa da sala de jantar, bebo café, acendo o cachimbo. Às vezes as ideias não
vêm, ou vêm muito numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na
véspera. Releio algumas linhas, que me desagradam. Não vale a pena tentar
corrigi-las. Afasto o papel.
Emoções indefiníveis me agitam –
inquietação terrível, desejo doido de voltar, tagarelar novamente com Madalena,
como fazíamos todos os dias, a esta hora. Saudade? Não, não é isto: é
desespero, raiva, um peso enorme no coração.
Procuro recordar o que dizíamos.
Impossível. As minhas palavras eram apenas palavras, e as dela tinham alguma
coisa que não consigo exprimir. Para senti-las melhor, eu apagava as luzes,
deixava que a sombra nos envolvesse até ficarmos dois vultos indistintos na
escuridão.
Lá fora os sapos arengavam, o vento
gemia, as árvores do pomar tornavam-se massas negras.
-- Casimiro!
Cassimiro Lopes estava no jardim,
acocorado ao pé da janela, vigiando.
-- Casimiro!
A
figura de Cassimiro Lopes aparece à janela, os sapos gritam, o vento sacode as
árvores, apenas visíveis na treva. Maria das Dores entra e vai abrir o
comutador. Detenho-a: não quero luz.
O tique-taque do relógio diminui, os
grilos começam a cantar. E Madalena surge no lado de lá da mesa. Digo baixinho:
-- Madalena!
A voz dela me chega aos ouvidos. Não,
não é aos ouvidos. Também já não a vejo com os olhos.
Estou encostado à mesa, as mãos
cruzadas. Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha branca.
-- Madalena...
A voz de Madalena continua a
acariciar-me. Que diz ela? Pede-me naturalmente que mande algum dinheiro a
mestre Caetano. Isto me irrita, mas a irritação é diferente das outras, é uma irritação
antiga, que me deixa inteiramente calmo. Loucura estar uma pessoa ao mesmo
tempo zangada e tranquila. Mas estou assim. Irritado contra quem? Contra mestre
Caetano. Não Obstante ele ter morrido, acho bom que vá trabalhar. Mandrião!
A toalha reaparece, mas não sei se é
esta toalha sobre que tenho as mãos cruzadas ou a que estava aqui há cinco
anos.
Rumor do vento, dos sapos, dos grilos.
A porta do escritório abre-se de manso, os passos de seu Ribeiro afastam-se.
Uma coruja pia na torre da igreja. Terá realmente piado a coruja? Será a mesma
que piava há dois anos? Talvez seja até o mesmo pio daquele tempo.
Agora seu Ribeiro está conversando com
Dona Glória no salão. Esqueço que eles me deixaram e que esta casa está quase
deserta.
-- Casimiro!
Penso que chamei Casimiro Lopes. A
cabeça dele, com o chapéu de couro de sertanejo, assoma de quando em quando à
janela, mas ignoro se a visão que me dá é atual ou remota.
Agitam-se em mim sentimentos
inconciliáveis: encolerizo-me e enterneço-me; bato na mesa e tenho vontade de
chorar.
São
Bernardo. Rio de Janeiro, Record, 1983.
Entendendo o romance:
01 – De acordo com o texto,
o que significa as palavras abaixo:
·
Arengar: discursar.
·
Mandrião: preguiçoso, vadio.
·
Assomar: aparecer.
02 – Nessa passagem de São
Bernardo, o narrador-personagem, Paulo Honório, sente-se bloqueado para
continuar sua história e, ao mesmo tempo, não consegue parar de escrever. Na
sua opinião:
a)
Por que não consegue prosseguir?
Por lhe escapar o retrato moral de sua mulher, Madalena.
b)
Por que não consegue parar?
Por um estado emocional pesado e confuso, repleto de lembranças que
precisam se externar.
03 – Que frase do texto
sintetiza o sentimento de culpa de Paulo Honório?
“A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi
desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.”
04 – De acordo com o texto:
a)
Do que Paulo Honório sente-se culpado?
Paulo Honório sente-se culpado por não ter compreendido Madalena e
por ter provocado o seu suicídio.
b)
Que características de Paulo Honório apontam
sua culpabilidade, tendo em vista as diferenças entre ele e Madalena? Cite uma
passagem do texto que exemplifique sua resposta.
O autoritarismo e a prepotência, diante da bondade e da solidariedade
de Madalena. Uma passagem do texto que exemplifica esta resposta é a referência
a mestre Caetano, a quem ela lhe pede que ajude, mas que ele manda trabalhar.
c)
No trecho onde se encontra a referência a
mestre Caetano, há fragmentos que indicam a confusão mental do
narrador-personagem, perdido entre o passado e o presente, entre reafirmar o
seu autoritarismo e reconhecer-lhe a estupidez. Identifique esses fragmentos.
Paulo Honório se diz irritado, mas é uma “irritação antiga”, que o
deixa “inteiramente calmo”. Em seguida diz que, embora mestre Caetano tenha
morrido, acha “bom que vá trabalhar”.
05 – Ao longo do texto, qual
a função das menções à noite, ao barulho dos sapos, ao vento sacudindo as
árvores e ao pio da coruja, enfim, aos elementos da natureza, tendo em vista o
caráter de rememoração da narrativa de Paulo Honório?
A função das
menções aos elementos da natureza é trazer o passado ao presente, fazer com que
aquele reapareça por meio da reprodução mental dos mesmos rumores, da mesma
atmosfera, vivenciados no passado.
06 – Identifique no texto
lido:
a)
Duas personagens que ainda se encontram no
presente de Paulo Honório.
Casimiro Lopes e Maria das Dores.
b)
Três personagens que só existem no passado e
nas lembranças de Paulo Honório.
Madalena, mestre Caetano e seu Ribeiro.
c)
A personagem que atravessa ambos os tempos.
Caracterize o seu estado de espírito e cite dois momentos do texto em que fica
mais explicita a confusão que estabelece entre o presente e o passado.
A personagem que atravessa ambos os tempos é Paulo Honório; seu
estado de espírito é de saudade, remorso, raiva, solidão, angustia, confusão
mental. Os momentos podem ser: “A voz dela me chega aos ouvidos. Não, não é aos
ouvidos...”; “Os objetos fundiram-se...”; ou “Terá realmente piado a coruja?
Será a mesma que piava há dois anos?”
07 – Releia o trecho que se
inicia com a exclamação: “--- Madalena!”, até o momento em que Paulo Honório
chama por Casimiro. Comente a presença de Madalena e de seu Ribeiro,
considerando a frase “Os objetos fundiram-se, e não enxergo sequer a toalha
branca”.
Em seu desespero
e solidão, Paulo Honório evoca tão intensamente as personagens de seu passado
que elas se tornam presentes, como fantasmas que o visitassem. A voz de
Madalena parece chegar aos ouvidos, e a imagem, aos olhos, mas são alucinações.
A toalha branca representa a realidade atual, que se apaga em sua visão. Mesmo
quando reaparece, ele não sabe se é a toalha que está sob suas mãos ou a que
ali estivera há cinco anos.
08 – Transcreva duas
passagens metalinguísticas do texto.
“Com efeito, se
me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para
nada, mas sou forçado a escrever”; “Às vezes as ideias não vem, ou vem muito
numerosas – e a folha permanece meio escrita, como estava na véspera.” Etc.
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