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domingo, 20 de janeiro de 2019

CONTO: POR QUE NÃO? EDSON GABRIEL GARCIA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Por que não?
        
                       Edson Gabriel Garcia

        -- Vamos sair, Salsichão?
        -- Não, não quero.
    -- Um dia você acorda e vai perceber que não é mais gente... que virou livro.
        Esbocei, ameacei e segurei um sorriso.
        -- Exagero.
    -- Exagero meu!? Você passa a maior parte do tempo metido no seu quarto, com seus livros, seus cadernos, suas ideias, seus óculos, suas espinhas...
        -- Eu gosto.
        -- Só disso?
        -- Não, claro que não.
        -- Mas parece. Vista uma roupa mais arejada, cara, e vamos sair.
        -- Não, hoje não.
        -- Cequisabe, Salsichão.
        Meu nome não é Salsichão. É Paulo. Mas também pudera, pareço mesmo mais um salsichão do que gente. E ainda por cima, os óculos. Coitados dos óculos, não têm culpa; culpa têm meus olhos que gostam tanto de ler e enxergam pouco. E, além dos óculos, as espinhas. Pode?! Pode. Mas isso não me aborrece tanto quanto poderia aborrecer uma pessoa normal. Às vezes, acho que eu não sou uma pessoa normal.
        -- Paulo, sai um pouco.
        -- Não quero, pai. Prefiro ficar em casa.
        -- Você acha normal um rapaz da sua idade passar a maior parte do tempo disponível dentro de casa, no meio dos livros, dos cadernos...?
        -- Bem... não sei o que você acha que é normal ou anormal... Normal pra mim é ter uma preferência... Posso?
        -- Claro... claro. Não quis dizer isso. Eu sei, cada um tem sua preferência, seu prazer... mas eu acho que falta alguma coisa pra você.
        -- Você sabe que não falta. Tenho vocês, tenho amigos, livros e tenho...
        -- Suas poesias!
        -- É. Tenho minhas poesias.
        Meu pai desistiu de continuar a conversa. É quase sempre assim. A gente engata um papo, com ele dá pra conversar tranquilamente, mas quando toco no assunto das minhas poesias tudo acaba sem meias palavras. Por que será? Ninguém me responde. Tá na cara que sou poeta menor, sem talento, desajeitado com as palavras. Mas e daí? Poeta nasce feito? Poesia não dá dinheiro? Poesia não dá camisa pra ninguém, como dizem todos que eu conheço e que não gostam de poesia?
        -- Você ainda perde tempo com isso, Salsichão?
        -- Com isso o quê?
        -- Poesia.
        -- Não sei se perco tempo... Uso parte do tempo rabiscando versos, pensando palavras, ideias, talhando estrofes...
        -- Chiiii... Vai mal.
        -- Não se preocupe: palavras não mordem. Até já disseram uma vez que literatura não derruba governo.
        -- Governo aqui, ninguém derruba... Quando cai, cai sozinho...
        -- Pois é. Por que o medo da poesia?
        -- Não é medo, Salsichão! Ê... que é isso? Tô achando é meio sem graça ficar o tempo todo mexendo com essa coisa de fazer verso, rima. Parece coisa de...
        -- ... de quê?!
        -- Coisa de menina apaixonada!
        Por falar em menina apaixonada, eu andei fazendo uns versos românticos, umas estrofes meio desmanchadas... até estranhei um pouco esse meu lado. Bom... também não é só porque faço versos de protesto que nunca vou arriscar um chorinho carinhoso. Não mostrei pra ninguém. Me lembrei de uma vez em que eu estava na praia e li, no muro de uma casa qualquer, uma pichação que fazia um jogo com as palavras “éter”, “eterna”, “mente” e “eternamente”. Eu emendei de primeira, costurei aqui e ali, até sair alguma coisa razoável. Quando terminar, vou mostra-la pros meus amigos. Vale a pena. Principalmente porque esses bocós pensam que eu não tenho olhos pra meninas. Mal sabem eles que pra elas eu tenho olhos, coração e versos. Nada mau, hein?

        [...] O tempo passou um pouco depressa. Tão ou mais depressa que o tempo de escrever duas linhas, de ler três versos. Eu continuo com a poesia. Inda agora há pouco, terminei uma que diz:
“Só à noite
O telefone louco
Não para um pouco.
Chama insistente
E eu digo alô
Para alguém silente.

Mas sei que é você,
Sabe por quê?
Seu perfume danado
Escapa de seu corpo
E corre apressado
Trazendo notícia
De um coração
Que bate acelerado.”

        Fiz para Ciça, de novo. Ando com ela no coração e a poesia no bolso. Pra todo mundo ver, mesmo que ela, Ciça, não entenda. Não precisa entender, basta gostar.
        -- Outra poesia pra mim, Salsichão?
        -- Mais ou menos. Quer ver?
        -- Quero.
        -- Gostou?
        -- Gostei. Parece mesmo que leva jeito... poeta!
        No peito a alegria explode, o verso toma conta de tudo. A poesia derrama emoção na minha certeza: nunca mais paro de fazer poesia.

    GARCIA, Edson Gabriel. Cochichos e sussurros; conto. São Paulo, Atual, 1988. p. 54-9.

Entendendo o conto:

01 – Qual o significado das palavras abaixo, se necessário utilize o dicionário?
·        Cequisabe: você é quem sabe.

·        Talhando: esculpindo, moldando.

·        Versos de protesto: versos que protestam contra injustiças sociais.

·        Éter: composto químico, espaço celeste.

02 – No primeiro bloco do texto lido, há um diálogo entre Paulo e alguém da intimidade dele (amigo ou irmão). Que indícios nos revelam essa proximidade?
      O interlocutor de Paulo critica-o por passar a maior parte do tempo metido no quarto, com seus livros e cadernos, fazendo referência a seus óculos e suas espinhas, trata-o por “cara”, chama-o pelo apelido e o convida para saírem juntos.

03 – Que expressão Paulo usa para dizer que gosta muito de ler?
      “... meus olhos que gostam tanto de ler...”

04 – Paulo se sente uma pessoa normal?
      Sim, mas às vezes desconfia não ser normal pelo fato de as pessoas questionarem seu gosto por livros.

05 – No terceiro bloco de diálogos alguém diz a Paulo que fazer poesia é perder tempo. Ele concorda com isso? Qual é a resposta dele?
      Paulo não concorda muito com isso, e diz que usa “parte do tempo rabiscando versos, pensando palavras, ideias, talhando estrofes...”

06 – Vamos ver se você se lembra do que já viu sobre poema.
a)   Paulo afirma que rabisca versos. Que é verso?
É cada uma das linhas de um poema.

b)   Diz que talha estrofes. Que é estrofe?
É um grupo de versos.

07 – Explique o que o narrador quer dizer com as expressões:
a)   “Andei fazendo [...] umas estrofes meio desmanchadas”.
Andei fazendo umas estrofes excessivamente românticas, apaixonadas.

b)   “Pensam que eu não tenho olhos pras meninas”.
Pensam que eu não observo, não presto atenção às meninas.

08 – Uma importante característica da linguagem poética é ser repleta de significações, isto é, pode provocar no leitor emoções totalmente novas. Na pichação que impressionou Paulo, que palavras estavam contidas em “eternamente”?
      “Éter”, “eterna”, “mente”.

09 – A capacidade de reinventar a língua empregada no dia-a-dia, de criar novas imagens com maior poder de expressão, é uma característica importante da linguagem poética. Encontre no poema que Paulo escreve para Ciça exemplos desse recurso e explique qual a “liberdade” que o poeta se permitiu. Nós damos o primeiro exemplo e você continua:

Na linguagem poética         -         Na linguagem usual
Telefone louco                       -         Só pessoas ou animais podem
                                                          ficar loucos.

                                                         
Perfume corre apressado       -        Perfume não corre nem
                                                          tem pressa.
Perfume trazendo notícia        -        Perfume não traz notícia.

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