Política de Privacidade

quarta-feira, 5 de dezembro de 2018

CONTO: A CAÇADA - LYGIA FAGUNDES TELLES - COM GABARITO

Conto: A caçada    

            Lygia Fagundes Telles

   A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou voo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.
        — Bonita imagem — disse ele.
        A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.
        — É um São Francisco.
        Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.
        — Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso… Pena que esteja nesse estado.
        O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.
        — Parece que hoje está mais nítida…
        — Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida, como?
        — As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?
        A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.
        — Não passei nada, imagine… Por que o senhor pergunta?
        — Notei uma diferença.
        — Não, não passei nada, essa tapeçaria não aguenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto… Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.
        — Extraordinário…
        A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.
        — Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços.
        O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde? …
        Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir lhe a seta.
        O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.
        — Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se… Mas não está diferente?
        A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.
        — Não vejo diferença nenhuma.
        — Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta…
        — Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
        — Aquele pontinho ali no arco… A velha suspirou. — Não vejo diferença nenhuma.
        — Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta…
        — Que seta? O senhor está vendo alguma seta?
        — Aquele pontinho ali no arco… A velha suspirou.
        — Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído: — Fique aí à vontade, vou fazer meu chá.
        O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde… Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta… A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.
        Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira… “Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?”
        Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos… E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. “Antes do aproveitamento da tapeçaria…” — murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.
        Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido? …
        Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? “Que loucura! … E não estou louco”, concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. “Mas não estou louco.”.
        Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.
        Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: “Que seta? Não estou vendo nenhuma seta…” Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. “Sou o caçador?” Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue.
        Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!
        Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:
        — Hoje o senhor madrugou.
        — A senhora deve estar estranhando, mas…
        — Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho…
        “Conheço o caminho” — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado? … Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.
        Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!
        “Não…” – gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.

Entendendo o conto:
01 – No conto “A Caçada”, de Lygia Fagundes Telles, há duas personagens. Assinale a opção correta acerca da afirmativa:
a. Uma jovem e um homem.
b. Dois caçadores.
c. Um caçador e uma caça.
d. Uma velha e um homem.

02 – Assinale a alternativa correta sobre o conto “A Caçada”.
a. As personagens não têm nome e o narrador não faz descrições sobre seus aspectos físicos para caracterizá-las.
b. Há duas personagens, uma delas era uma velha, que vai ao estabelecimento atraído por uma tapeçaria antiga, com a representação de uma caçada.
c. Há duas personagens, uma delas era um homem, provavelmente o dono da loja, ou então um funcionário, há muito tempo no estabelecimento.
d. O tempo da história abrange um período de seis meses.

03 – O diálogo entre as personagens é apresentado pelo(a):
a. Narrador-personagem
b. A velha
c. Narrador
d. O homem.

04 – Todas as alternativas a seguir apresentam a voz da mulher, exceto:
a. “― Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso...”
b. “― Parece que hoje está mais nítida...”
c. “― Nítida? ... Nítida como?”
d. “― Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?”

05 – Através do diálogo entre as duas personagens, o leitor pode perceber que
a. É a primeira vez que o homem vai à loja.
b. O homem já havia estado ali anteriormente e não manifesta interesse pela tapeçaria.
c. É a primeira vez que a velha está na loja.
d. Os dois já se conhecem, não é a primeira vez que o homem vai àquela loja.

06 – O emprego do discurso modalizante nas frases do homem, “― Parece que hoje está mais nítida...”, “― Parece que hoje tudo está mais próximo”, em contraposição com as opiniões emitidas pela mulher, permite que o leitor conclua que,
a. Na verdade, quem está diferente é a personagem feminina, e não a tapeçaria.
b. Na verdade, quem está diferente é a personagem masculina, e não a tapeçaria.
c. Na verdade, quem está diferente é a personagem masculina, e não a mulher.
d. Nenhuma das personagens está diferente, assim como a tapeçaria também não está.

07 – A narração é ulterior aos acontecimentos, os tempos verbais empregados pelo narrador são do pretérito. Entretanto, as falas das personagens estão no:
a. Futuro do presente.
b. Futuro do pretérito.
c. Presente.
d. Pretérito imperfeito.

08 – O primeiro momento de tensão do conto é criado pelo narrador com a frase:
a. “O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.”
b. “Em que tempo, meu Deus! Em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?”
c. “A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar.”
d. “A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara e lhe contar.”

09 – A narrativa estruturada em diálogos, geralmente, fornece um máximo de informação, com uma presença mínima do informador. Não é o que acontece, entretanto, neste conto. Por quê?
a. As cenas fornecem muita informação ao leitor, o que causa, como consequência, um despertar da curiosidade do leitor.
b. As cenas fornecem pouca informação ao leitor, o que causa, como consequência, um desinteresse do leitor.
c. As cenas fornecem pouca informação ao leitor, o que causa, como consequência, um despertar da curiosidade do leitor.
d. O desinteresse do leitor dar-se-á em querer saber quem é esse homem? Qual o mistério que a tapeçaria esconde?

10 – O desfecho do conto é feito com alternância de estado de discursos: tem início com o discurso relatado (reportado) e é seguido por discurso narrativizado e discurso indireto livre, terminando com o emprego, novamente, do discurso relatado. Isso proporciona agilidade ao texto, uma narração frenética e confusa, apropriada à situação vivenciada pela personagem, o momento da descoberta, da revelação do segredo da tapeçaria. A revelação é assinalada pela frase:
a. “Não...”
b. “Era o caçador? Ou a caça?”
c. “Vertia sangue o lábio gretado.”
d. “E lembrou-se.”











3 comentários: