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segunda-feira, 26 de novembro de 2018

CRÔNICA: O NARIZ - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM QUESTÕES GABARITADAS

Crônica: O nariz
                  
            Luís Fernando Veríssimo

       Era um dentista respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes, mas de uma sólida reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço. Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes de borracha com óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigodes que fazem a pessoa ficar parecida com o Groucho Marx. Mas o nosso dentista não estava imitando o Groucho Marx. Sentou-se à mesa de almoço – sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um nariz postiço.
        – O que é isso? – perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos.
        – Isto o quê?
        – Esse nariz.
        – Ah, vi numa vitrina, entrei e comprei.
        – Logo você, papai…
        Depois do almoço ele foi recostar-se no sofá da sala como fazia todos os dias. A mulher impacientou-se.
        – Tire esse negócio.
        – Por quê?
        – Brincadeira tem hora.
        – Mas isto não é brincadeira.
        Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se para a porta. A mulher o interpelou:
        – Aonde é que você vai?
        – Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
        – Mas com esse nariz?
        – Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. – Se fosse uma gravata nova, você não diria nada. Só porque é um nariz…
        – Pense nos vizinhos. Pense nos clientes.
        Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risadas (“Logo o senhor, doutor…”), fizeram perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
        – Ele enlouqueceu?
        – Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi “ele” assim.
        Naquela noite, ele tomou seu chuveiro, como fazia sempre antes de dormir. Depois, vestiu o pijama e o nariz postiço e foi se deitar.
        – Você vai usar esse nariz na cama? – perguntou a mulher.
        Vou. Aliás, não vou mais tirar este nariz.
        – Mas, por quê?
        – Porque não!
        Dormiu logo. A mulher passou metade da noite olhando para o nariz de borracha. De madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz postiço.
        – Papai…
        – Sim, minha filha.
        – Podemos conversar?
        – Claro que podemos.
        – É sobre esse seu nariz…
        – O meu nariz, outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
        – Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra, um homem como você resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
        – O nariz é meu e vou continuar a usar.
        – Mas por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
        – Não tem porque não quer…
        – Como é que ela vai à rua com um homem de nariz postiço?
        – Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um nariz de borracha não faz nenhuma diferença. Se não faz nenhuma diferença, por que não usar?
        – Mas, mas…
        – Minha filha.
        – Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai!
        A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos, pediu demissão. Não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava aproximar-se dele. Mandou o pedido de demissão pelo correio. Os amigos mais chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um psiquiatra.
        – Você vai concordar – disse o psiquiatra depois de concluir que não havia nada de errado com ele – que seu comportamento é um pouco estranho…
        – Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois por cento do meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de pensar, nem de me comportar. Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, bom pai, contribuinte, sócio do fluminense, tudo como antes. Mas as pessoas repudiam todo o resto por causa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?
        – É… – disse o psiquiatra. – Talvez você tenha razão…
        O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar o nariz postiço. Porque agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios.

Veríssimo, Luís Fernando. O nariz e outras crônicas. São Paulo:
Ática, 1994.p.73-74. Coleção para gostar de ler.
Entendendo a crônica:

01 – A crônica discute vários aspectos da vida social moderna; contudo, um deles se destaca. Das palavras seguintes, qual traduz o assunto central do texto?
Comportamento       • moda      • casamento      • beleza

02 – As três frases a seguir expressam a reação da esposa e da filha diante do comportamento do dentista:
"Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância."
"— O que é isso? — perguntou a mulher depois da salada, sorrindo menos."
"A mulher impacientou-se."
a)     De uma frase para outra, nota-se que o narrador, para demonstrar o processo de irritação da esposa e da filha, empregou o recurso da gradação. Esse recurso consiste em criar um movimento crescente ou decrescente, que acontece aos poucos, em graus. Comparando as partes destacadas nas frases, observa-se uma gradação crescente ou decrescente? 
Observa-se uma gradação crescente.

b)     A partir de que momento o comportamento bem-humorado da mãe e da filha começa a se modificar?
A partir do momento que ele diz que aquilo não é uma brincadeira.

03 – Observe esta descrição que o narrador faz do dentista:
"Era um dentista respeitadíssimo. [...] Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes, mas de uma sólida reputação como profissional e cidadão."
Compare-a, agora, com estes pensamentos da esposa:
"Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita"
a)      Em algum momento esses fragmentos demonstram os sentimentos e desejos do dentista como pessoa? Justifique.
Não, em nenhum momento pensaram em seus sentimentos e desejos, sempre pensavam em sua carreira, reputação e em seu nome. 

b)      De acordo com o texto, o que é mais importante para a sociedade: o que o indivíduo realmente é ou o que ele parece ser?
O que ele parece ser. Uma prova disso, é que quando o dentista chegou ao seu consultório, com o nariz postiço todos começaram a abandoná-lo (até mesmo sua secretária que trabalhava com ele a 15 anos).

04 – O mundo do dentista, até o episódio do nariz postiço, resumia-se a dois elementos básicos: a família esposa e filha) e a profissão (incluindo aí seus clientes e sua secretária).
a)   Que comportamento têm essas pessoas quando ele insiste em agir de modo diferente?
Ninguém aceita, todos começam a abandoná-lo.

b)   De modo geral, tal qual ocorreu no caso do dentista, pode-se dizer que a sociedade reserva um único destino a todos aqueles que ousam ser diferentes. Qual é esse destino?
Sim, a sociedade tem preconceito e o destino é que todos acabam sendo excluído.

05 – A esposa suspeita que o marido tenha enlouquecido, os amigos o aconselham a procurar um psiquiatra. O psiquiatra conclui que ele está bem, apesar de apresentar um "comportamento estranho".
a)    Que argumentos contrários o dentista apresenta diante da opinião do psiquiatra sobre seu comportamento?
O argumento contrário utilizado pelo dentista, é dizer, que estranho é o modo que agem as outras pessoas, ele continuava o mesmo, apenas usando um nariz postiço.

b)    No final da crônica, o narrador afirma que o dentista continua a usar o nariz: "agora não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios". Qual a diferença entre uma questão de nariz e uma questão de princípios?
A diferença é que “a questão do nariz” ele usava simplesmente por gostar e “a questão de princípios” ele o usa para ver até quando as pessoas vão ficar longe dele e se vão voltar a ser amigos dele.

06 – O dentista diz ao psiquiatra: "Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o meu nariz?". E o psiquiatra responde: "É... [...] Talvez você tenha razão...". E o narrador nos propõe uma questão: "O que é que você acha, leitor? Ele tem razão?".
Então dê sua opinião: O que é ser diferente? Somos o que somos ou o que parecemos ser?
      Ser diferente é ser como o dentista, querer ser do seu jeito não do jeito que os outros o querem (quem quer agradar a todos, não agrada ninguém). Somos o que nós somos.

07 – Você já ouviu a canção a seguir, de Rita Lee e Arnaldo Baptista, que fez sucesso na voz de Ney Matogrosso?

BALADA DO LOUCO
Dizem que sou louco
Por pensar assim [...]
Eu juro que é melhor
Não ser um normal
Se eu posso pensar
Que Deus sou eu.
Sim, sou muito louco
Não vou me curar
Já não sou o único
Que encontrou a paz
Mais louco é quem me diz
E não é feliz
Eu sou feliz.

Nessa letra de música, o eu lírico — isto é, a voz que se expressa no texto e que não é necessariamente o autor — nega-se a se "curar" e diz ter encontrado a paz?
a)   Você acha que o dentista também encontrou a paz?
Sim, ele sempre foi feliz, mas do seu jeito.

b)   Releia os três últimos versos da Balada do louco. Você acha que ser diferente pode trazer felicidade?
Sim. Eu acho que ser louco pelo jeito de vestir, andar, ser, ou fazer qualquer outra coisa pode trazer grandes felicidades.



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