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domingo, 4 de novembro de 2018

CRÔNICA: DELÍRIOS DE HONESTIDADE - WALCYR CARRASCO - COM QUESTÕES GABARITADAS


Crônica: DELÍRIOS DE HONESTIDADE
              
                  Walcyr Carrasco

        Outro dia eu estava pensando em como seria o mundo se as pessoas fossem realmente honestas. Inclusive no mais prosaico cotidiano. Eu me imagino entrando em uma dessas churrascarias de luxo. Sento-me à mesa e peço um filé bem passado ao garçom. Ele me alerta:
        — Não aconselho. O filé hoje está uma sola de sapato.
        — Peço o quê?
        — Peça licença e vá para outro lugar. Olhe bem o cardápio. Pelo preço de um bife o senhor compra mais de um quilo no açougue. Quer jogar seu dinheiro fora?
        Vou para outro e escolho: salmão. O garçom:
        — Se o senhor quiser, eu trago. Mas salmão, salmão, não é. É surubim, alimentado de forma a ficar com a carne rosada. Ainda quer?
        — Nesse caso fico com escargots.
        — Lesmas, quer dizer? Por que não vai catar no jardim?
        Ou então entro numa butique de griffe. Experimento um jeans, que está apertadinho na barriga. O vendedor aproxima-se:
        — Ficou bom? Ah, não ficou, não, está apertado e não tenho um número maior.
        — Acho que dá... ando pensando em fazer regime.
        — Pois compre depois de obter algum resultado. Se bem que não sei, não... essa barriga parece coisa consolidada.
        — Eu quero o jeans. Quero e pronto!
        --- Não vou deixar que cometa essa loucura. Aliás, falando francamente, o que o senhor viu nesse jeans, que nem cai bem nas suas adiposidades? Só pode ser a etiqueta. Meu amigo, ainda acredita em griffe?
        Corro à casa de chocolates e peço um dietético. A mocinha no balcão:
        — Confia nessa história de dietético? Ou só quer calar a sua consciência?
        — E se eu quiser confiar, estou proibido?
        — Pois saiba que engorda. Menos que o chocolate comum, mas engorda. E o senhor não me parece em condição de fazer concessões a doces. Não vou contribuir para o seu auto-engano, jamais poria esse chocolate nas suas mãos. Vá à feira e peça um jiló.
        Resolvo trocar de carro. Passeio pela concessionária, escolho:
        — Este vermelho, que tal?
        — O motor funde mais dia, menos dia — alerta o vendedor.
        — Parece tão bonitinho...
        — Desculpe, mas você acha que a lataria anda sozinha? Já alertei o dono da loja, este carro está péssimo. Fique com aquele.
        — Mas é velho e horroroso!
        — Pode ser, mas anda. Está decidido, leve aquele. E não discuta!
        O embate com a honestidade absoluta também poderia ser uma galeria de arte.
        — Gostei daquele — aponto o quadro à marchande.
        — Está precisando de pano de chão?
        — Não... é que... bem, posso não entender de arte, mas achei bonito.
        — Sinceramente, o senhor não entende mesmo. Isso aqui é um horror. Não vale a tinta que gastou. Está exposto porque o dono da galeria insistiu. Leve aquele, é valorização na certa.
        — Aquele? É muito sombrio... eu queria alguma coisa alegre e ...
        — Não insista. Sombrio ou não, vou embrulhar. Faça o cheque, é melhor pra você.
        E numa loja de móveis? Mostro as cadeiras que me interessam. O decorador:
        — É amigo de algum ortopedista?
        — Está precisando de um? Posso indicar...
        — Você é quem vai precisar. Essas cadeiras vão desmontar na terceira vez em que alguém se sentar. Fratura na certa.
        — Caras assim e desmontam? Eu devia chamar o Procon.
        — Se quiser, eu chamo para o senhor!
        Pior seria alguma vaidosa querendo fazer plástica. O cirurgião examina:
        — Hum... hum...
        — Meu nariz vai ficar bom, doutor?
        — Se a senhora se contenta em trocar uma picareta por um parafuso, fica! Agora, se ambiciona uma melhora significativa, o melhor é morrer e reencarnar de novo. Pode ser tenha mais sorte.
        A paciente sai chorando. Eu, que vivo me irritando com vendedores, chego a uma conclusão: quero comprar o jeans que me oprime a barriga, o chocolate que não emagrece e o quadro colorido. Deliciar-me com as pequenas fantasias. Feitas as contas, delírios de honestidade podem transformar-se em pesadelos cruéis. Os pequenos enganos abrem as comportas dos pequenos sonhos e adoçam o dia-a-dia.

Walcyr Carrasco. O golpe do aniversariante. São Paulo, Ática, 1989.
Entendendo a crônica:
01 – Nessa crônica, o narrador-personagem imagina algumas situações que aconteceriam a partir de uma suposição, uma condição.
a)   Que suposição o faz imaginar tais situações que desencadeiam a narrativa?
Ele imagina que como seria o mundo se as pessoas fossem realmente honestas, ainda mais no prosaico cotidiano.

b)   Com base nessa suposição, o que o narrador-personagem, provavelmente, pensa sobre a sinceridade das pessoas?
Ele pensa que com sinceridade as pessoas que trabalham no comércio vão parar de querer vender seu produto, e sim analisar se o produto é de boa qualidade.

02 – No texto, as situações são apresentadas ao leitor por meio de diálogos entre narrador-personagem e seus interlocutores imaginários.
a)   Em sua opinião, por que esse recurso foi utilizado?
Foi utilizado para criar um tom de realidade nas situações.

b)   Qual dos diálogos apresentados, em sua opinião, é o mais improvável de acontecer na vida real?
Dentre os diálogos apresentados o mais improvável seria na churrascaria de luxo, quando o seu cliente pede um “escargots” e o garçom fala para ele não aceitar, pois era um surubim, alimentado de forma a ficar com a carne rosada.

03 – Para ilustrar o ponto de vista defendido na crônica, o narrador-personagem imagina-se numa churrascaria de luxo, pedindo um bife ao garçom.
a)   Que expressão o garçom usa para referir-se ao bife?
A expressão que ele usa é um alerta de que o bife está uma sola de sapato, ou seja, duro.

b)   Essa expressão é uma metáfora. Qual o seu significado no texto?
Essa expressão significa que o bife está duro ou ruim.

c)   Ao mostrar-se preocupado com o preço dos pratos, o que fica implícito (escondido) sobre o garçom?
O garçom está preocupado se o cliente vai desperdiçar o dinheiro.

04 – Ao correr à casa de chocolates, o narrador-personagem se depara com uma mocinha que se recusa a atendê-lo.
a)   O que revelam os argumentos da mocinha sobre o produto?
Os argumentos da mocinha revelam que o narrador não está em boa forma, ou seja, ele está gordo.

b)   O que dá o tom humorístico à fala da personagem?
É quando ela fala que o cliente não está em condição de fazer concessões a doces.

c)   Há uma crítica implícita nesse trecho. O que está sendo criticado?
Sim. Está sendo criticado a forma física do cliente.

05 – Outra situação imaginada pelo narrador-personagem é a da mulher à procura de um cirurgião plástico.
a)   Qual palavra é empregada para referir-se à mulher que quer fazer plástica?
A palavra usada é “vaidosa”.

b)   A partir dessa palavra, o que fica subentendido sobre a opinião do autor a respeito de cirurgia plástica?
É de que todos querem ficar bonitos e vaidosos hoje em dia.

06 – O autor do texto trata com humor e ironia a inversão dos papéis entre consumidor e vendedor. Que efeito esse recurso provoca no leitor?
      Que o vendedor mente para poder vender sua mercadoria, mostra o quanto as pessoas não são sinceras.

07 – Releia o último parágrafo do texto. Depois de imaginar essas situações do cotidiano, a que conclusão chega o narrador-personagem? Você concorda com essa conclusão? Por quê?
      Ruim, pois ele não adquiriu os produtos que ele queria. Sim, eu concordo, porque todas as pessoas têm ilusões, as quais as fazem quererem viverem melhores.

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