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terça-feira, 20 de novembro de 2018

CONTO: RELATO DE OCORRÊNCIA EM QUE QUALQUER SEMELHANÇA NÃO É MERA COINCIDÊNCIA - RUBEM FONSECA - COM QUESTÕES GABARITADAS

Conto: Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência

         Na madrugada do dia 3 de maio, uma vaca marrom caminha na ponte do rio Coroado, no quilômetro 53, em direção ao Rio de Janeiro.
         Um ônibus de passageiros da empresa Única Auto Ônibus, chapa RF 80-07-83 e JR 81-12-27, em direção a São Paulo.
         Quando vê a vaca, o motorista Plínio Sérgio tenta se desviar. Bate na vaca, bate no muro da ponte, o ônibus se precipita no rio.
         Em cima da ponta a vaca está morta.
         Debaixo da ponte estão mortos: uma mulher vestida da calça comprida e blusa amarela, de vinte anos presumíveis e que nunca será identificada; Ovídia Monteiro, de trinta e quatro anos; Manuel dos Santos Pinhal, português, de trinta e cinco anos, que usava uma carteira de sócio do Sindicato de Empregados em Fábrica de Bebidas; o menino Reinaldo de um ano, filho de Manuel; Eduardo Varela, casado, quarenta e três anos.
         O desastre foi presenciado por Elias Gentil dos Santos e sua mulher Lucília, residentes nas cercanias. Elias manda a mulher apanhar um facão em casa. Um facão? Pergunta Lucília. Um facão depressa sua besta, diz Elias. Ele está preocupado. Ah! percebe Lucília. Lucília corre.
         Surge Marcílio da Conceição. Elias olha com ódio para ele. Aparece também Ivonildo de Moura Júnior. E aquela besta que não traz o facão! Pensa Elias. Ele está com raiva e medo de todo mundo, suas mãos tremem. Elias cospe no chão várias vezes, com força, até que a sua boca seca.
         Bom dia, seu Elias, diz Marcílio. Bom dia, diz Elias entre dentes, olhando pros lados. Esse mulato! Pensa Elias.
         Que coisa, diz Ivonildo, depois de se debruçar na amurada da ponte e olhar os bombeiros e os policiais embaixo. Em cima da ponte, além do motorista de um carro da Polícia Rodoviária, estão apenas Elias, Marcílio e Ivonildo.
         A situação não anda nada boa não, diz Elias olhando para a vaca. Ele não consegue tirar os olhos da vaca.
         É verdade, diz Marcílio.
         Os três olham para a vaca.
         Ao longe vê-se o vulto de Lucília, correndo.
         Elias recomeçou a cuspir. Se eu pudesse eu também era rico, diz Elias. Marcílio e Ivonildo balançam a cabeça, olham para a vaca e para Lucília, que se aproxima correndo. Lucília também não gosta de ver os dois homens. Bom dia dona Lucília, diz Marcílio. Lucília responde balançando a cabeça. Demorei muito? Pergunta, sem fôlego, ao marido.
         Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal; olha com ódio para Marcílio e Ivonildo. Cospe no chão. Corre para cima da vaca.
         No lombo é onde fica o filé, diz Lucília. Elias corta a vaca.
         Marcílio se aproxima. O senhor depois me empresta a sua faca, seu Elias? Pergunta Marcílio. Não, responde Elias.
         Marcílio se afasta, andando apressadamente. Ivonildo corre em grande velocidade.
         Eles vão apanhar facas, diz Elias com raiva, aquele mulato, aquele corno. Suas mãos, sua camisa e sua calça estão cheias de sangue. Você devia ter trazido uma bolsa, uma saca, duas sacas, imbecil. Vai buscar duas sacas, ordena Elias.
         Lucília corre.
         Elias já cortou dois pedaços grandes de carne quando surgem, correndo, Marcílio e sua mulher Dalva, Ivonildo e sua sogra Aurélia e Erandir Medrado com seu irmão Valfrido Medrado. Todos carregam facas e facões. Atiram-se sobre a vaca.
         Lucília chega correndo. Ela mal pode falar. Está grávida de oito meses, sofre de verminose e sua casa fica no alto de um morro, a ponte no alto de outro morro. Lucília trouxe uma segunda faca com ela. Lucília corta a vaca.
         Alguém me empresta uma faca senão eu apreendo tudo, diz o motorista do carro da polícia. Os irmãos Medrado, que trouxeram vários facões, emprestam um ao motorista.
         Com uma serra, um facão e uma machadinha aparece João Leitão, o açougueiro, acompanhado de dois ajudantes.
         O senhor não pode, grita Elias.
         João Leitão se ajoelha perto da vaca.
         Não pode, diz Elias dando um empurrão em João. João cai sentado.
         Não pode, gritam os irmãos Medrado.
         Não pode, gritam todos, com exceção do motorista de polícia.
         João se afasta; a dez metros de distância, para; com os seus ajudantes, fica observando.
         A vaca está semidescarnada. Não foi fácil cortar o rabo. A cabeça e as patas ninguém conseguiu cortar. As tripas ninguém quis.
         Elias encheu as duas sacas. Os outros homens usaram as camisas como se fossem sacos.
         Quem primeiro se retira é Elias com a mulher. Faz um bifão pra mim, diz ele sorrindo para Lucília. Vou pedir umas batatas a dona Dalva, vou fazer também umas batatas fritas para você, responde Lucília.
         Os despojos da vaca estão estendidos numa poça de sangue. João chama com um assobio os seus dois auxiliares. Um deles traz o carrinho de mão. Os restos da vaca são colocados no carro. Na ponte, apenas fica a poça de sangue.

Rubem Fonseca, Contos Reunidos. São Paulo, Cia. das Letras, 1994, p. 360
http://gramaticaaopedaletra.blogspot.com/2009/04/8-ano-7-serie-relato-de-ocorrencia-em.html

Entendendo o conto:
01 – O texto lido é um conto e se chama "Relato de ocorrência em que qualquer semelhança não é mera coincidência". A expressão relato de ocorrência faz lembrar outra bastante utilizada no meio policial: boletim de ocorrência ou B.O. Na parte inicial do texto, até determinado parágrafo, vários elementos da linguagem aproximam o conto da notícia policial.
a)   Identifique ao menos três elementos do texto que sejam comuns na linguagem da notícia policial.
Quilômetro 53, chapa RF80-70-83 e JR 81-1-27.

b)   A partir de qual parágrafo o texto passa a ter feições diferentes da notícia policial?
Parágrafo 5°.

02 – Considerando os fatos inicialmente narrados e o rumo que a narrativa toma após o envolvimento das personagens Elias, Lucília, Marcílio e Ivonildo, nota-se que há uma quebra de expectativa no texto.
      a) O que se esperava que o texto fosse relatar em primeiro plano? Por quê?
          Iria relatar sobre acidentes de caminhões em rodovias, afinal, quem matou a vaca foi um caminhão.

      b)Que fato ganha o primeiro plano na narrativa?
          O caminhão ter atropelado a vaca.

03 – Releia o 6° e o 7° parágrafos, observando as ações e o estado emocional de Elias.
a)   Como está Elias emocionalmente nesses parágrafos?
Está nervoso.

b)   Que comportamento repetitivo de Elias confirma esse estado emocional?
No texto dizia que ele olhava Marcílio com ódio.

c)   Quando Elias pede um facão à mulher, é criada outra expectativa que não se cumpre. Conside­rando o contexto e o estado emocional da personagem, levante hipóteses: O leitor é levado a supor que Elias pede o facão com que finalidade? 
Para matar Marcílio.
      d) Qual das seguintes frases do texto confirma a resposta dada ao item acima?
• "Elias cospe no chão várias vezes, com força, até que a sua boca seca."
• "Elias segura o facão na mão, como se fosse um punhal"
• "Bom dia, diz Elias entre dentes, olhando pros lados."

04 – Observe as frases seguintes, ditas por Elias a Marcílio e Ivonildo no momento em que a polícia está embaixo da ponte, resgatando os mortos:
"A situação não anda boa não"
"Se eu pudesse eu também era rico"
a)   Essas frases são incoerentes com o contexto da tragédia. Por quê?
Sim. Afinal havia acontecido uma tragédia.

b)   Considerando que, em seguida, Elias começa a descarnar a vaca, essas frases passam a ter relação com o novo contexto? Por quê?
Sim. Pois mostra que ele não estava preocupado com a vaca, e sim que ele queria cortá-la para ter algo para comer.

05 – Além dos moradores da região em que ocorreu o acidente, outras pessoas se aproximam da vaca e também tentam tirar proveito da situação. Levante hipóteses:
a)   Por que, na sua opinião, as personagens não permitem que o açougueiro e seus dois ajudantes participem?
Porque eles já tem a carne do açougue para comer.

b)   Por que o motorista do carro da polícia recebe autorização e até uma faca para pegar carne?
Porque ele ameaçou apreender eles.

06 – Embora o texto focalize as ações ocorridas sobre a ponte, fica implícito um paralelismo, isto é, uma correspondência entre essas ações e as que estão ocorrendo embaixo da ponte. Nos dois espaços, há morte e sangue.
a)   Compare as ações das personagens em cima da ponte com as prováveis ações dos policiais embaixo da ponte. Em que se assemelham?
Ambos estavam lá por causa do acidente.

b)   Embaixo da ponte, os policiais deparam com a morte, e isso certamente lhes provoca tristeza. Que significado tem a morte para as persona­gens em cima da ponte?
Eles estão “importando” mais com a morte da vaca.

c)   Que circunstância relacionada com a mulher de Elias se associa à vida?
Apesar de estar grávida, o seu marido é grosso como ela, algo que acontece com muitas mulheres.

07 – Os textos de Rubem Fonseca às vezes produzem no leitor um sentimento de grande perplexidade, devido ao absurdo de certas situações, que levam as personagens a perder completamente os sentimentos e o senso de humanidade e a quase se tornar animais.
a)    Que atitudes e comportamentos das personagens revelam brutalidade, animalização e perda de sentimentos e do senso de humanidade?
O fato deles começarem a cortar a vaca sem nenhuma piedade, e também eles até que “gostaram” da morte da vaca, pois assim podiam cortá-la para comê-la.

b)    Com base nos fatos do texto, qual a causa desse embrutecimento do ser humano?
Eles brigarem por um animal, como um animal.

08 – O conto é um gênero literário que tem algumas semelhanças com a crônica: é curto e apresenta tempo, espaço e número de personagens limitados. O conto, porém, costuma ser mais denso e profundo, com personagens trabalhadas psicologicamente. Tais características se verificam no conto lido? Justifique.
      Sim, várias partes do texto diz o psicológico dos personagens, e é bem tenso o texto.

09 – Considere o título do conto. Você já deve ter visto certos filmes ou novelas de TV que trazem nos letreiros finais uma observação deste tipo: "Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas conhecidas é mera coincidência". Por meio desse aviso, os produtores dos filmes ou novelas procuram garantir que a obra não se baseia em pessoas ou acontecimentos reais. No conto de Rubem Fonseca:
a)   Há preocupação em associar o texto a uma obra de ficção?
Não, pois ele quis mostrar um “outro lado da vida”.

b)   Por que a linguagem policial — própria dos boletins de ocorrência —, empregada na 1ª parte do texto, contribui para dar realismo ao acontecimento relatado?
Porque é dessa forma que acontece na “vida real”.

c)   Conclua: Provavelmente, para o autor, qual é o papel social da literatura?
Mostrar como vive muitos brasileiros no mundo atual.


3 comentários:

  1. Ótima proposta para introduzir o assunto Realismo/ Naturalismo na literatura brasileira.As questões sugerem uma boa discussão sobre a abordagem d texto.

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