Crônica: GENTILEZA AO AVESSO
WALCYR CARRASCO
Não me conformo com certos comentários
corteses. Havia um bom tempo, eu estava jogando vôlei. Saltei para rebater a
bola. Aterrissei na quadra de cimento. Ralei a perna. Fui para o banco. A coxa
em chamas. Que felicidade! Veio um colega. Deu o maior apoio:
– Não foi nada.
Como? Nem podia sofrer em paz? Já vi a
situação se repetir mil vezes. A criança cai de boca no chão do shopping. A mãe
garante que "não foi nada!". A modelo desaba na passarela. Tornozelo
torcido. O contrato, confete. Sempre há um simpático para garantir que não é
nada, nada!
Pior é velório. A pessoa com o coração
partido. Chega alguém, animador:
– Não chore!
Ué, não pode chorar? Deveria estar
jogando uma partida de pingue-pongue? Toda vez que perdi alguma pessoa querida
e ouvi esse conselho, tive vontade de sair no tapa.
Se na casa alheia servem um prato
pavoroso? Já me aconteceu. Era uma torta de frango com gosto de sapato velho.
Cada pedacinho deslizava pela minha garganta feito um pedregulho! Engoli tudo,
para não fazer desfeita. A anfitriã colocou outra fatia no meu prato.
– Coma mais um pedacinho!
Ah, frase trágica! Que fazer com a
torta? Queria enfiar no bolso, disfarçadamente! Mas, se alguém visse, ainda ia
dizer que estava levando comida para casa!
Também fico fora de mim ao ouvir:
– Até que você não está tão mal assim!
Esse mimo costuma ser dito justamente
quando a gente tenta cavar um elogio. Chego a um coquetel de mangas
arregaçadas, jeans e tênis. Todos os outros convidados estão de terno. Para me
sentir à vontade, comento com a garota que me recebe:
– Ih! Acho que errei o traje.
Vem
a frase fatídica. Algum ser na face na Terra se acalma a ouvir tal consolo? Não
estou tão mal assim? Fico com a sensação de estar péssimo! Existem várias
adaptações, uma mais torturante que a outra.
– Você não dirige tão mal assim!
–
Você não engordou tanto assim!
A pior de todas:
– Você não está tão velho assim! –
quando dito por uma jovem, bem novinha, é doloroso!
Corro ao espelho. Os pés-de-galinha
aumentaram?
O cheque volta. O mês está se espichando
até o próximo salário! Procuro uma amiga. Não, não vou pedir dinheiro
emprestado. Só ambiciono um ombro para me lamentar. Ela diz:
– Não se preocupe!
Belo consolo! Só se for doido! O
conselho vem seguido de uma divagação filosófica:
–
Não tem do que reclamar! Tem gente muito pior que você!
Sim, é verdade! Há uma multidão em
situação ainda mais dramática. Mas e meu rombo no banco? Devo esquecer? Sair
cantando pelas ruas?
A adolescente sai para a balada e avisa
à mãe:
– Fique sossegada.
Ah, é? A pobre senhora vai ficar
calmíssima, enquanto rola a madrugada? Ao amanhecer, a criatura chega trançando
as pernas e comenta:
– Viu só? Tudo bem!
É a típica situação em que nada está
bem. Não fica bem nem dizer uma coisa dessas! Mas ai da mãe que se rebelar
diante da afirmação!
Até assaltantes praticam esse tipo de
etiqueta. Um amigo foi pego em um sequestro-relâmpago. No carro. O sujeito
apontou o revólver. Garantiu:
– Nós tamo aqui numa boa. Fica tranquilo.
Que beleza! Se estavam "numa
boa", por que enfiar o cano no nariz!? Haja tranquilidade!
Ao se separar, uma amiga entrou em
guerra com o marido. Os dois quase se esganaram por causa da partilha dos bens.
Até a posse do filho entrou na dança! Uma tia idosa quis dar uma força:
– Tudo vai dar certo, é questão de
tempo!
Era a prova de que pior não podia
ficar! Gentileza por gentileza, quando não há o que dizer, é melhor fugir de
uma frase feita.
Walcyr Carrasco. Revista
Veja, São Paulo. São Paulo: Abril, 2 jun 2004.
Entendendo o crônica:
01 – O texto trata de forma
cômica as situações do dia-a-dia, sobre gafes e enganos cometidos pelo autor.
Você já passou por alguma situação parecida? Comente-a.
Resposta pessoal
do aluno.
02 – O autor termina o texto
dizendo ser melhor “fugir de uma frase feita”. Encontre algumas no texto. Você
conhece mais algumas? Quais? Em que situação elas poderiam ser usadas?
Resposta pessoal
do aluno.
03 – Observe as palavras
assinaladas na frase:
“Já
vi essa situação se repetir mil vezes”.
A expressão assinalada representa o que
aconteceu de fato ou é um exagero? Com que intenção foi usada pelo autor?
Trata-se de um
exagero para reforçar, chamar a atenção sobre o fato.
04 – Escreva algumas frases
usando o exagero para chamar a atenção:
Resposta pessoal
do aluno.
05 – Qual é o tipo de
linguagem utilizada no texto?
Hipérbole.
06 – Observe o substantivo
composto nas frases abaixo, e passe-o para o plural.
a)
O cirurgião-dentista não irá atender
hoje.
Os cirurgiões-dentistas não irão atender hoje.
b)
A obra-prima ficou linda.
As obras-primas ficaram lindas.
c)
Nesta segunda-feira, começa a aula.
Nesta segundas-feiras, começam as aulas.
d)
O girassol é lindo.
Os girassóis são lindos.
e)
O pássaro quero-quero é bravo.
Os pássaros quero-queros são bravos.
f)
O pé-de-moleque ficou saboroso.
Os pés-de-moleque ficaram saborosos.
g)
A banana-prata é uma fruta saudável.
As bananas-prata são umas frutas saudáveis.
Nenhum comentário:
Postar um comentário