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quinta-feira, 16 de agosto de 2018

HISTÓRIA: TRANQUILA TARDE DE INVERNO ENTRE PAI, FILHA E CHOCOLATES - RUY GUERRA - COM GABARITO

História: Tranquila tarde de inverno entre pai, filha e chocolates
                Ruy Guerra

      Lisboa – Estava um frio de cão e terminava a tarde de sábado com um romance policial. A minha filha brincava sozinha com as pedras de um jogo de gamão, última mania da casa. Debaixo de um imenso edredom azul, minha mulher ganhava coragem pra enfrentar a preparação do jantar.
        -- Papai, é verdade que a gente só deve dizer a verdade?
        Dandara tem 10 anos e é um monstrinho de olhos azuis.
        Menti.
        -- É.
        -- Então por que é que no outro dia você falou para o Joaquim Pedro que ele fez bem em não ter dito a verdade?
        Tinham dado ao pai de Joaquim Pedro alguns meses de vida e ele preferira não lhe contar. Viera desabafar comigo e não me dera conta que a minha filha, que parecia absorta numa revistinha do “Cascão”, escutara a conversa.
        -- Era um caso muito especial.
        -- Quer dizer então que em casos muito especiais a gente pode mentir?
        -- Pode.
        -- Como é que a gente sabe que o caso é muito especial?
        Desconversei, perguntei o que íamos comer, Leo perguntou se estávamos de acordo com umas costeletas de borrego e seguiu para a cozinha.
        A minha filha voltou à carga.
        -- Quando, papai?
        -- Quando o quê?
        -- Quando é que a gente sabe que é um caso muito especial?
        -- Você vai entender quando crescer.
        -- Mas agora, como é que eu faço para saber quando devo mentir?
        Me senti desconfortável enquanto respondia.
        -- Na tua idade não se deve nunca mentir.
        -- Quer dizer que só adulto é que deve mentir?
        Senti que caminhava por uma senda escorregadia.
        -- É, mas nem sempre.
        -- Como é que a gente sabe quando um adulto está mentindo pra gente?
        -- Não sabe.
        -- Então agora você pode estar mentindo pra mim.
        -- Eu não estou mentindo. Não tenho motivo nenhum pra isso.
        -- Se tivesse mentindo, contava?
        -- Claro que não. Senão a mentira não servia pra nada.
        -- Se eu falar com o pai do Joaquim Pedro eu não devo mentir porque sou criança?
        -- Você não conhece o pai do Joaquim Pedro.
        -- Mas se conhecesse devia mentir, né?
        Senti-me encurralado.
        -- É.
        -- Então criança também pode mentir.
        Achei que era tempo de acabar com a conversa.
        -- Você não tem nada para fazer?
        Ela aproveitou a deixa.
        -- Posso jogar no computador?
        -- Pode.
        Ela foi.
        Suspirei, aliviado.
        Meia hora depois voltou.
        -- Papai...
        -- O que é?
        -- Sabe aquela caixa de chocolates que a tia Lalá me deu no Natal?
        -- O que é que tem?
        -- Posso comer?
        -- Só um. Daqui a pouco vamos jantar.
        -- Tá.
        Consegui mais meia hora de sossego.
        -- Papai.
        -- O que é agora?
        -- Eu comi todos.
        -- Você comeu todos os chocolates?
        -- Foi.
        -- Mass eu não disse pra comer só um?
        -- Pensei que você estava mentindo.
        -- Eu expliquei que só se mente em ocasiões muito especiais.
        -- Vai me castigar por eu dizer a verdade?
        -- Vou castigar porque me desobedeceu. Estuda a tabuada de multiplicar dos 7, dos 8 e dos 9.
        -- Agora?
        -- Agora.
        -- Depois vai passar comigo?
        -- Vou.
        Ela desapareceu de novo.
        -- Já estudei.
        -- Muito bem. Pode ir brincar.
        -- De quê?
        -- Do que quiser.
        -- Papai, eu menti. Eu não comi os chocolates.
        -- Então por que é que falou que comeu?
        -- Pra ver o que você fazia.
        -- Agora já sabe.
        Ela continuou me encarando.
        -- Papai, com quantos anos posso começar a mentir sem ser castigada?
        -- Outro dia a gente conversa sobre isso.
        -- Que dia?
        -- Não sei, outro dia.
        -- É mentira.
        -- Isso é maneira de falar com o seu pai?
        -- Você é que disse que adulto mente.
        Procurei ser didático.
        -- Escuta bem: às vezes se mente, mas só às vezes, e por questões muito, muito sérias.
        -- E comer chocolates não é uma questão muito séria?
        -- Não é tão séria assim.
        -- Então se eu comesse os chocolates não devia me castigar.
        -- E por que é que você disse que comeu?
        Os olhinhos azuis brilharam.
        -- Porque comi.
        Procurei me controlar.
        -- Chega, vamos tirar esta história a limpo. Vai buscar a caixa.
        -- Mas eu comi, papai.
        -- Vai buscar a caixa, já disse.
        A caixa estava intacta.
        -- Senta aqui.
        Ela sentou, atenta.
        -- Escuta, por que é que você anda dizendo que comeu, se não comeu?
        -- Quando você era pequeno, nunca mentiu?
        -- Não sei, não me lembro.
        -- Mas pode ter mentido, não pode?
        -- Vamos acabar com esta conversa. Contou que comeu os chocolates, foi castigada, ponto final.
        -- Mas eu não comi.
        -- Mas mentiu.
        -- Tá.
        Dandara, as perninhas no ar, seguia no tabuleiro as estratégias do manual de gamão aberto sobre o tapete.
        -- Papai, já sei abrir com 6.1, 3.1 e 4.2.
        -- Ótimo.
        Joguei o policial para o lado e liguei a televisão.
        -- Quer que eu mostre?
        -- Depois, agora deixa escutar as notícias.
        A minha filha sumiu da sala.
        Entrou no ar um programa de calouros.
        -- Dandara, está começando o programa que você gosta.
        -- Surgiu, correndo.
        -- Onde é que você estava?
        -- Comendo os chocolates.
        Os olhinhos azuis cintilavam.
        -- Comi todos.
        Fui salvo pelo gongo. Da cozinha, Leo chamou para o jantar.
        Levantei-me.
        -- Anda, vamos pra mesa.
        Chegaram as costeletas.
        -- Comam logo antes que esfrie.
        Dandara fica olhando o prato fumegante.
        -- Tou sem fome.
        Leo tem um gesto de desalento.
        -- Mas eu preparei as costeletas sem alho, do jeito que você gosta!
        Resolvi intervir.
        -- Deixa, se não quiser comer que não coma. Danda, vai buscar o vinho, vai.
        Leo aproveita a ausência.
        -- Por que é que ela não quer comer?
        -- Esquece.
        A minha filha volta com a garrafa.
        -- Posso servir?
        -- Pode.
        Os copos cheios.
        -- Papai, posso ir ver televisão?
        -- Não. Você fica aqui conosco durante o jantar.
        -- Tá.
        O monstrinho fixa a minha mulher, a vozinha mansa.
        -- Leo, quando tiver tempo, me explica quando é que se deve mentir?
        Eu, que sempre quis ter sete filhas, naquele momento teria dado a alma para não ter nenhuma.
        Pelo menos esta.
        Juro que não estou mentindo.
                                                  Ruy Guerra. O Estado de São Paulo.
Entendendo a história:
01 – Quando dizemos que o frio é de cão?
      Quando é muito frio.

02 – O que é edredom?
      Cobertor acolchoado.

03 – Monstrinho de olhos azuis é xingamento? Explique.
      É uma forma carinhosa, como se percebe pelo diminutivo e pelo texto.

04 – Qual o significado de desconversar?
      Mudar de assunto.

05 – Borrego é um animal de menos de um ano. Sua mãe é a ovelha. Como se denomina o pai?
      Carneiro.

06 – O que é voltar à carga?
      Voltar ao assunto.

07 – Explique o que é senda escorregadia em geral e o que é, no texto, caminhava por uma senda escorregadia.
      Em geral: caminho estreito escorregadio.

08 – Diga qual o sentido de Senti-me encurralado.
      No texto: ele estava ficando com dificuldade de responder.

09 – O que é ser didático?
      É ser eficiente no ensino.

10 – Qual o significado de estratégia?
      Arte de escolher os melhores meios para vencer. Sentiu-se sem saída, sem resposta.

11 – Esclareça o significado de policial em Joguei o policial para o lado e liguei a televisão.
      É o romance policial.

12 – O que é gesto de desalento?
      Gesto de desânimo.

13 – A expressão teria dado a alma significa o quê?
      Teria dado tudo, faria até o impossível para.

14 – Exponha sua opinião sobre dizer sempre a verdade.
      Resposta pessoal do aluno.

15 – Qual a sua opinião sobre a menina Dandara?
      Resposta pessoal do aluno.

16 – Como você pode saber se alguém está mentindo-lhe?
      Resposta pessoal do aluno.
 

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