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quinta-feira, 5 de julho de 2018

CONTO: O EDIFÍCIO - MURILO RUBIÃO - COM GABARITO

Conto: O EDIFÍCIO
         Murilo Rubião

        Chegará o dia em que os teus pardieiros se transformarão em edifícios; naquele dia ficarás fora da lei. (Miquéias, VII, 11).

        "Mais de cem anos foram necessários para se terminar as fundações do edifício que, segundo o manifesto de incorporação, teria ilimitado número de andares. As especificações técnicas, cálculos e plantas, eram perfeitas, não obstante o ceticismo com que o catedrático da Faculdade de Engenharia encarava o assunto. Obrigado a se manifestar sobre a matéria, por alunos insatisfeitos com o tom reticencioso do mestre, resvalava para a malícia afirmando tratar-se de "vagas experiências de outra escola de concretagem". Batida a última estaca e concluídos os alicerces, o Conselho Superior da Fundação, a que incumbia a direção geral do empreendimento, dispensou os técnicos e operários, para, em seguida, recrutar nova equipe de profissionais e artífices.

        A LENDA

        Ao engenheiro responsável, recém-contratado, nada falaram das finalidades do prédio. Finalidades, aliás, que pouco interessavam a João Gaspar, orgulhoso como se encontrava de, no início da carreira, dirigir a construção do maior arranha-céu de que se tinha notícia. Ouviu atentamente as instruções dos conselheiros, cujas barbas brancas, terminadas em ponta, lhes emprestavam aspecto de severa pertinácia. Davam-lhe ampla liberdade, condicionando-a apenas a duas ou três normas, que deveriam ser corretamente observadas. A sua missão não seria somente exercer funções de natureza técnica. Envolvia toda a complexidade de um organismo singular. Os menores detalhes do funcionamento da empresa construtora estariam a seu cargo, cabendo-lhe proporcionar salários compensadores e constante assistência ao operariado. Competia-lhe, ainda, evitar quaisquer motivos de desarmonia entre os empregados. Essa diretriz, conforme lhe acentuaram, destinava-se a cumprir importante determinação dos falecidos idealizadores do projeto e anular a lenda corrente de que sobreviveria irremovível confusão no meio dos obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, consequentemente, o malogro definitivo do empreendimento. No decorrer das minuciosas explicações dos dirigentes da Fundação, o jovem engenheiro conservou-se tranquilo, demonstrando absoluta confiança em si, e nenhum receio quanto ao êxito das obras. Houve, todavia, uma hora em que se perturbou ligeiramente, gaguejando uma frase ambígua. Já terminara a entrevista e ele recolhia os papéis espalhados pela mesa, quando um dos velhos o advertiu:
        — Nesta construção não há lugar para os pretensiosos. Não pense em terminá-la, João Gaspar. Você morrerá bem antes disso. Nós que aqui estamos constituímos o terceiro Conselho da entidade e, como os anteriores, jamais alimentamos a vaidade de sermos o último.

        A  ADVERTÊNCIA

        A mesma orientação que recebera dos seus superiores, o engenheiro a transmitiu aos subordinados imediatos. Nem sequer omitiu a advertência que o encabulara. E vendo que suas palavras tinham impressionado bem mais a seus ouvintes do que a ele as do ancião, sentiu-se plenamente satisfeito.

        A COMISSÃO 

        João Gaspar era meticuloso e detestava improvisações. Antes de encher-se a primeira forma de concreto, instituiu uma comissão de controle para fiscalizar o pessoal, organizar tabelas de salários e elaborar um boletim destinado a registrar as ocorrências do dia. Essa medida valeu maior rendimento de trabalho e evitou, por diversas vezes, dissensões entre os assalariados. A fim de estimular a camaradagem entre os que lidavam na construção, desenvolviam-se aos domingos alegres programas sociais. Devido a esse e outros fatores, tudo corria tranquilamente, encaminhando-se a obra para as etapas previstas. De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.

        O BAILE

        Inquietante expectativa marcou a aproximação do 800° pavimento. Redobraram-se os cuidados, triplicou-se o número de membros da Comissão de Controle, cuja atividade se tornara incessante, superando dificuldades, aplainando divergências. Deliberadamente, adiou-se o baile que se realizava ao termo de cada cinquenta pisos concluídos. Afinal, dissiparam-se as preocupações. Haviam chegado sem embaraços ao octingentésimo andar. O acontecimento foi comemorado com uma festa maior que as precedentes. Pela madrugada, porém, o álcool ingerido em demasia e um incidente de pequena importância provocaram um conflito de incrível violência. Homens e mulheres, indiscriminadamente, se atracaram com ferocidade, transformando o salão num amontoado de destroços. Enquanto cadeiras e garrafas cortavam o ar, o engenheiro, aflito, lutava para acalmar os ânimos. Não conseguiu. Um objeto pesado atingiu-o na cabeça, pondo fim a seus esforços conciliatórios. Quando voltou a si, o corpo ensanguentado e dolorido pelas pancadas e pontapés que recebera após a queda, sentiu-se vítima de terrível cilada. De modo inesperado, cumprira-se a antiga predição.

        O EQUÍVOCO

        Depois do incidente, João Gaspar trancou-se em casa, recusando-se a receber os seus mais íntimos colaboradores, para não ouvir deles palavras de consolo. Já que se fazia impossível continuar as obras, desejava, ao menos, descobrir o erro em que incorrera. Acreditava ter obedecido fielmente às instruções do Conselho. Se fracassara, a culpa deveria ser atribuída à omissão de algum detalhe desconhecido da profecia. A insistência dos auxiliares venceu sua teimosia e concordou em atendê-los. Queriam saber por que desanimara, não mais comparecera ao edifício. Ficara ressentido pela briga?
        — Que adiantaria a minha presença? Não lhes satisfez a minha humilhação?
        — Como? — indagaram.
        — Aquilo fora uma simples bebedeira.
        — Estavam todos envergonhados com o que acontecera e lhe pediam desculpas.
        — E ninguém abandonou o trabalho? Ante a resposta negativa, ele se abraçou aos companheiros:
        — Daqui para frente nenhum obstáculo interromperá nossos planos! (Os olhos permaneciam umedecidos, mas os lábios ostentavam um sorriso de altivez.)

        O RELATÓRIO

        Em ambiente calmo, todos se empenhando nas suas tarefas, mais noventa e seis andares foram acrescidos ao prédio. As coisas seguiam perfeitas, a média de trabalho dos assalariados era excelente. Empolgado por um delirante contentamento, o engenheiro distribuía gratificações, desfazia-se em gentilezas com o pessoal, vagava pelas escadas, debruçava-se nas janelas, dava pulos, enrolava nas mãos as barbas embranquecidas. Para prolongar o sabor do triunfo, que o cansaço começava solapar, ocorreu-lhe redigir um circunstanciado relatório aos diretores da Fundação, contando os pormenores da vitória. Demonstraria também a impossibilidade de surgir, no futuro, outras profecias que pudessem embaraçar o prosseguimento das obras. Ultimado o memorial, ele se dirigiu à sede do Conselho, lugar em que estivera poucas vezes e em época bem remota. Em vez dos cumprimentos que julgava merecer, uma surpresa o aguardava: haviam morrido os últimos conselheiros e, de acordo com as normas estabelecidas após a desmoralização da lenda, não se preencheram as vagas abertas. Ainda duvidando do que ouvira, o engenheiro indagou ao arquivista — único auxiliar remanescente do enorme corpo de funcionários da entidade — se lhe tinham deixado recomendações especiais para a continuação do prédio. De nada sabia, nem mesmo por que estava ali, sem patrões e serviços a executar. Ansiosos por descobrir documentos que os orientassem, atiraram-se à faina de revolver armários e arquivos. Nada conseguiram. Só encontraram especificações técnicas e uma frase que, amiúde, aparecia à margem de livros, relatórios e plantas: "É preciso evitar-se a confusão. Ela virá ao cabo do octingentésimo pavimento".

        A DÚVIDA

        Esvaíra-se a euforia de João Gaspar. Vago e melancólico, retornou ao edifício. Da última laje, as mãos apoiadas na cintura, teve um momento de mesquinha grandeza, julgando-se senhor absoluto do monumento que estava a seus pés. Quem mais poderia ser, desde que o Conselho se extinguira?! Fugaz foi o seu desmedido orgulho. Ao regressar a casa, onde sempre faltara a diligência de uns dedos femininos, as dúvidas o perseguiam. Por que legavam a um mero profissional tamanho encargo? Quais os objetivos dos que tinham idealizado tão absurdo arranha-céu? As perguntas iam e vinham, enquanto o edifício se elevava e menores se faziam as probabilidades de se tornar claro o que nascera misterioso. Sorrateiro, o desânimo substituiu nele o primitivo entusiasmo pela obra. Queixava-se aos amigos do tédio que lhe provocava o infindável movimento de argamassa, pedra britada, fôrmas de madeira, além da angústia que sentia, vendo o monótono subir e descer de elevadores. Quando a ansiedade ameaçou levá-lo ao colapso, convocou os trabalhadores para uma reunião. Explicou-lhes, com enfática riqueza de detalhes, que a dissolução do Conselho obrigava-o a paralisar a construção do edifício.
        — Falta-nos, agora, um plano diretor. Sem este não vejo razões para se construir um prédio interminável — concluiu.
        Os operários ouviram tudo com respeitoso silêncio e, em nome deles, respondeu firme e duro um especialista em concretagem:
        — Acatamos o senhor como chefe, mas as ordens que recebemos partiram de autoridades superiores e não foram revogadas.

        O DESESPERO

        João Gaspar, inutilmente, apelaria para a compreensão dos servidores. Usava recursos convincentes, numa linguagem branda, porque seus propósitos eram pacíficos. Igualmente corteses, os empregados repeliam a ideia de abandonar o trabalho. — Ouçam-me — pedia ele, impaciente com a obstinação dos subordinados. — É inexequível um monstro de ilimitados pavimentos!
Murilo Rubião
Entendendo o conto:

01 – Com base na leitura e análise do conto “O Edifício”, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a)   (F) O Edifício havia sido planejado para 800 andares, mas os operários, por conta própria, continuaram a erguê-lo indefinidamente.
b)   (V) Só para concluir as fundações do edifício, demoraram mais de cem anos.
c)   (V) Havia a lenda de que adviria completa confusão entre os obreiros ao se atingir o octingentésimo andar do edifício e, em função disso, o malogro definitivo de empreendimento.
d)   (F) O conto é narrado na primeira pessoa; o narrador é João Gaspar.
e)   (V) De cinquenta em cinquenta andares, João Gaspar oferecia uma festa aos empregados. Fazia um discurso. Envelhecia.

02 – Com base na leitura e análise do conto “O Edifício”, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a)   (F) A predição de que, ao atingir o octingentésimo andar, a construção do edifício paralisar-se-ia cumpriu-se.
b)   (V) Na festa comemorativa do octingentésimo andar, houve briga incontrolável entre os obreiros do edifício.
c)   (F) Depois da morte dos conselheiros, a construção do edifício foi paralisado.
d)   (F) João Gaspar trabalhou na construção do edifício desde as fundações.
e)   (V) João Gaspar envelheceu enquanto erguia os andares do edifício.

03 – Com base na leitura e análise do conto “O Edifício”, classifique as afirmações seguintes de verdadeiras ou falsas:
a)   (V) Mesmo demitindo todo o pessoal, a construção do edifício não foi interrompida.
b)   (F) O conto termina com o desabamento do edifício.
c)   (F) O conto termina com a morte de João Gaspar.
d)   (V) A construção do edifício contaminou até operários das cidades vizinhas.
e)   (V) Mesmo sem remuneração pelos serviços prestados, os operários continuaram a erguer o estranho edifício.

04 – Antes de assumir a construção do edifício, João Gaspar:
a)   (   ) Tinha esposa e filhos.
b)   (   ) Estivera algum tempo em um manicômio.
c)   (   ) Já era um construtor experiente.
d)   (X) Não empreendera nenhuma obra tão grande e tão complexa.

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