TEXTO: ANTES QUE ELAS CRESÇAM
Há um período em que os pais vão
ficando órfãos dos próprios filhos. É que as crianças crescem. Independentes de
nós, como árvores tagarelas e pássaros estabanados, elas crescem sem pedir
licença. [...] crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com alardeada
arrogância.
Mas não crescem todos os dias, de igual
maneira; crescem, de repente. Um dia se assentam perto de você no terraço e
dizem uma frase de tal maturidade, que você sente que não pode mais trocar as
fraldas daquela criatura.
Onde é que andou crescendo aquela danadinha,
que você não percebia? Cadê aquele cheirinho de leite sobre a pele? Cadê a
pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com palhaços,
amiguinhos e o primeiro uniforme do maternal ou escola experimental?
Ela está crescendo num ritual de obediência
orgânica e desobediência civil. E você agora está ali na porta da
discoteca esperando que ela não apenas cresça, mas apareça. Ali estão muitos
pais, ao volante, esperando que saiam esfuziantes sobre patins[...].
Entre hambúrgueres e refrigerantes nas
esquinas, lá estão elas, com o uniforme de sua geração: incômodas mochilas da
moda nos ombros ou, então, com a suéter amarrada na cintura. Está quente, a
gente diz que vão estragar a suéter, mas não tem jeito, é o emblema da geração.
[...]
Há um período em que os pais vão ficando
órfãos dos próprios filhos.
Longe já vai o momento em que o primeiro
mênstruo foi recebido como um impacto de rosas vermelhas. Não mais as
colheremos nas portas das discotecas e festas, quando surgiam entre gírias e
canções. Passou o tempo do balé, da cultura francesa e inglesa. Saíram do banco
de trás e passaram para o volante das próprias vidas. Só nos resta dizer “bonne
route< bonne route” como naquela canção francesa narrando a emoção do pai
quando a filha lhe oferece o primeiro jantar no apartamento dela.
Deveríamos ter ido mais vezes à cama delas ao
anoitecer para ouvir sua alma respirando conversas e confidências entre os
lençóis da infância e os adolescentes cobertores naquele quarto cheio de
colagens, posters e agendas coloridas de Pilot. Não, não as levamos suficientes
vezes ao shopping, ao circo, ao teatro, não lhes demos suficientes hambúrgueres
e cocas, não lhes compramos todos os sorvetes e roupas merecidas.
Elas cresceram sem que esgotássemos nelas
todo nosso afeto.
No princípio subiam a serra ou iam à casa de praia
entre embrulhos, comidas, engarrafamentos, natais, páscoas, piscinas e
amiguinhas. Sim, havia as brigas dentro do carro, disputa pela janela, pedidos
de sorvetes e sanduíches, cantorias infantis. Depois chegou a idade em que
subir para a casa de campo com os pais começou a ser um esforço, um sofrimento,
pois era impossível largar a turma aqui na praia e os primeiros namorados. Esse
exílio dos pais, esse divórcio dos filhos, vai durar sete anos bíblicos. Agora
é hora dos pais nas montanhas terem a solidão que queriam, mas, de repente,
exalarem contagiosa saudade daquelas pestes.
O jeito é esperar. Qualquer hora podem nos
dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos
próprios filhos, e que não pode morrer conosco. Por isto os avós são tão
desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última
oportunidade de reeditar o nosso afeto.
Por isso, é necessário fazer alguma coisa a
mais, antes que elas cresçam.
Affonso Romano de Sant’Anna. O homem
que conheceu o amor.
Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
ENTENDENDO O TEXTO:
A crônica que você leu
apresenta uma profunda visão do autor sobre o crescimento dos(as) filhos(as) e
os sentimentos dos pais.
01 – Que frase no primeiro parágrafo sintetiza a visão do autor sobre
esse aspecto? Assinale a alternativa correta.
a) ( )“Há um período em que os pais vão ficando órfãos dos
próprios filhos.”
b)
(x)“[...] elas crescem sem pedir licença”.
c) ( )“[...] crescem com uma estridência alegre e, às vezes, com
alardeada arrogância”.
02 – O que o cronista demonstra sentir ao empregar a frase que você
indicou no item a: contentamento ou melancolia? Justifique sua resposta.
Melancolia, porque tudo acontece
muito rápido e os pais não se preparam para esta separação.
03 – O cronista inicia o texto com a frase: “Há um período em que os
pais vão ficando órfãos dos próprios filhos”.
Uma palavra nessa frase foi utilizada fora do uso comum pelo cronista.
Qual é a palavra e o que ela significa na crônica?
Pais ficando órfãos dos filhos. Significa
que os filhos crescem e vão seguir sua vida.
04 – Que construção na frase informa que esse fato acontece aos poucos,
à medida que o tempo passa?
Quando diz: "vão ficando".
05 – Algumas frases do texto fazem referência a diferentes período de
crescimento do ser humano. A que fase de crescimento se refere cada um dos
trechos a seguir?
a) “Cadê a pazinha de brincar na areia, as festinhas de aniversário com
palhaços[...]?”
Infância.
b) “Saíram do banco de trás e passaram para o volante das próprias
vidas”.
Adulta.
06 – De acordo com o cronista, caso o amor pelos filhos não se esgote,
“O jeito é espera.”. Em que momento da vida os pais poderão esgotar esse amor?
Quando tiverem os netos, poderão gastar
este amor estocado, não exercido nos próprios filhos, e que não pode morrer com
eles.
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