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segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

TEXTO: DO LUGAR ONDE A VIDA É DE MENTIRA E DOS MUITOS PAPÉIS - COM GABARITO


Texto: Do lugar onde a vida é de Mentira e dos muitos papéis

 Amados irmãos do vasto mar, muito teria o vosso humilde servo a vos contar para conhecerdes a verdade sobre a Europa. Para tanto, minha fala precisaria ser tal qual a cachoeira que corre da manhã à noite e, mesmo assim, não seria possível contar tudo pois a vida do Papalagui assemelha-se à vida do mar cujo princípio e fim jamais se pode ver com exatidão. A vida do Papalagui tem tantas ondas quanto o mar, a grande água, e pode ser tempestuosa, movimentada, sorridente, sonhadora. Tal qual homem algum conseguiria retirar a água do mar com o oco da mão, também não me é possível trazer-vos o grande mar que é a Europa com a pequenez do meu espírito.
        Mas não quero deixar de vos contar, pelo menos, que assim como o mar não existe sem água, assim não pode haver vida na Europa sem a vida de mentira [...].
        O lugar da vida de mentira! Não é fácil explicar-vos como é esse lugar que o Branco chama cinema; explicar-vos tão claramente que vos seja fácil compreender. Em todas as aldeias da Europa, existe est lugar misterioso, mais procurado do que a casa do missionário; que faz sonhar até as crianças e ocupa o seu espírito.
        O cinema é uma cabana maior do que a maior cabana de chefe de Upolu; muito maior até. Escura, mesmo durante o dia, e tão escura que ninguém conhece quem está perto; tão escura que se fica cego quando se entra e mais cego ainda quando de novo se sai. Por esta cabana as pessoas arrastam-se ao longo das paredes, às apalpadelas, até vir uma moça com um fogo na mão a fim de leva-los até onde há lugar. Os Papalaguis ficam sentados uns junto dos outros, na escuridão, sem se enxergarem; e a sala escura fica cheia de gente, todos calados; cada um sentado numa tábua estreita; e todas as tábuas estão dispostas na direção de uma mesma parede.
        Desta parede, embaixo, digamos assim, de uma garganta profunda, vem um zumbido, um barulho; e assim que os olhos se acostumam à escuridão, vê-se um Papalagui que, sentado, luta com um baú, batendo nele com os dedos abertos, batendo numas linguetas brancas e pretas, muitas linguetas, que o grande baú vai apresentando; e cada lingueta range alto, com vozes diferentes cada vez que é tocada, de tal forma que produz guinchos selvagens desordenados, tal qual uma briga na aldeia.
        Este barulho todo é para desviar nossos sentidos, para enfraquece-los, a fim de acreditarmos no que estamos vendo e não duvidamos de que é verdade. Na parede brilha um raio de luz, dando a impressão de uma lua cheia, onde se veem pessoas, de verdade, que parecem Papalaguis de verdade, vestidos como eles, movendo-se, andando para cá e para lá, correndo, rindo, saltando, tal qual existem em todos os lugares da Europa. É como se fosse a imagem da lua na lagoa, é a lua e não é; é apenas cópia. [...]
        Mas é certo que estes homens na parede são homens de mentira, não são homens de verdade. Se eu pudesse agarrá-los, ver-se-ia que são feitos apenas de luz, que não é possível pegar neles. Servem somente para mostrar ao Papalagui todos os seus prazeres e pesares, suas tolices e fraquezas. [...]
        Estas imagens sem vida, que não respiram, dão ao Papalagui muito contentamento. Nesta sala escura, ele pode se iludir com uma vida de mentira, sem sentir vergonha, sem ser visto pelos outros. O pobre faz-se de rico, o rico faz-se de pobre; o enfermo julga-se sadio, o fraco julga-se forte. Na escuridão, cada um vive uma vida de mentira, que jamais viveu, nem viverá na realidade.
        Entregar-se a esta vida de mentira tornou-se uma verdadeira paixão para o Papalagui. Tão grande, às vezes, que o faz esquecer de sua vida de verdade. É doentia esta paixão porque o homem saudável não vive a vida de mentira numa sala escura; vive a vida real, com calor, ao sol claro.

                 Scheurmann, Erich. O Papalagui: comentários de Tuiávii,
               Chefe da tribo Tiavéa, nos mares do sul. 7. ed. São Paulo:
                                             Marco Zero, s/d. p. 79-81. (gragmento).
Interpretação do texto:
01 – O texto apresenta a fala de um chefe samoano, Tuiávii. A quem ele se dirige?
      Tuiávii dirige-se a ‘seus irmãos”, ou seja, a outros nativos da ilha de Samoa.

a)   No caderno, copie do texto as passagens em que se pode identificar a quem se dirige Tuiávii.
Há diferentes passagens em que a presença dos ouvintes de Tuiávii é marcada: “Amados irmãos do vasto mar, muito teria o vosso humilde servo a vos contar para conhecerdes a verdade sobre a Europa”; “não me é possível trazer-vos o grande mar que é a Europa”; “não quero deixar de vos contar”; “Não é fácil explicar-vos como é esse lugar que o Branco chama cinema; explicar-vos tão claramente que vos seja fácil compreender”.

b)   Que termos, nessas passagens, marcam a presença dos ouvintes de Tuiávii no texto?
Além de um vocativo, observamos que a presença dos ouvintes de Tuiávii é marcada pelo uso de pronomes de 2ª pessoa do plural e de um verbo flexionado na mesma pessoa.

02 – Tuiávii procura descrever, de modo minucioso, algo que viu na Europa. O que está sendo descrito por ele?
      Tuiávii descreve o cinema. Considerando o momento em que Tuiávii teria passado pela Europa, trata-se de uma sessão de cinema mudo.

a)   Tuiávii utiliza uma expressão criada por ele para fazer referência àquilo que descreve. Que expressão é essa?
Segundo Tuiávii, o cinema é “o lugar da vida de mentira”.

b)   Essa expressão traduz algum juízo de valor? Por quê?
Sim. Quando define o cinema como “lugar da vida de mentira” o chefe samoano deixa clara a sua reprovação em relação à ilusão de realidade criada pelo cinema.

03 – Um mesmo recurso é utilizado por Tuiávii em várias descrições. Leia:
        [...] Minha fala precisaria ser tal qual a cachoeira que corre da manhã à noite e, mesmo assim, não seria possível contar tudo pois a vida do Papalagui assemelha-se à vida do mar cujo princípio e fim jamais se pode ver com exatidão.
a)   Que recurso é esse? Transcreva no caderno os trechos em que o recurso é empregado.
O recurso presente no trecho citado é a comparação: “minha fala precisaria ser tal qual a cachoeira que corre da manhã à noite”; “a vida do Papalagui assemelha-se à vida do mar”.

04 – Além do recurso identificado na questão anterior, um outro também está muito presente na fala do chefe samoano. Observe e trecho destacado.
        [...] não me é possível trazer-vos o grande mar que é a Europa [...].
a)   Que recurso foi usado?
No caso da passagem contada, Tuiávii recorre a uma metáfora e apresenta a Europa como um “grande mar”.

05 – Os dois recursos linguísticos utilizados por Tuiávii são figuras de linguagem. Por que ele recorre com tanta frequência a essas figuras, em seu texto?
      Logo no início do terceiro parágrafo Tuiávii afirma: “Não é fácil explicar-vos como é este lugar que o Branco chama cinema; explicar-vos tão claramente que vos seja fácil compreender”. A razão de ele recorrer a metáforas e comparações é justamente esta: criar referências visuais conhecidas dos samoanos para que eles tenham alguma base para elaborar representações visuais para aquilo que desconhecem.

06 – A leitura do texto permite concluir que Tuiávii tem um objetivo claro ao descrever, para seus irmãos samoanos, o “lugar onde a vida é de mentira”. Que objetivo é esse?
      A intenção de Tuiávii é criticar o comportamento do Papalagui. Como ele diz, logo no início, pretende que seus “amados irmãos” conheçam “a verdade sobre a Europa”. O chefe samoano constata que o Papalagui extrai grande prazer em viver uma vida de mentira, criada pela ilusão do cinema. Mas, para Tuiávii, “É doentia esta paixão porque o homem saudável não vive a vida de mentira numa sala escura; vive a vida real, com calor, ao sol claro.”

a)   Podemos afirmar que a opinião de Tuiávii explicita um conflito de valores. Explique.  
Ao longo da descrição que faz, por meio das comparações e metáforas que utiliza, Tuiávii parece exaltar tudo o que diz respeito à natureza e condenar os artefatos tecnológicos do Papalagui, que fazem com que ele mergulhe na fantasia, permitindo-se viver uma vida de ficção. Na perspectiva do chefe samoano, nada pode substituir a vida real, a natureza, e valorizar artefatos que sirvam somente para criar essa ilusão é uma grande tolice.



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