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sexta-feira, 6 de outubro de 2017

CONTO: VENTA-ROMBA - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO


CONTO: VENTA-ROMBA
                 Graciliano Ramos

        Ofereceram a meu pai o emprego de juiz substituto e ele o aceitou sem nenhum escrúpulo. Nada percebia de lei, possuía conhecimentos gerais muito precários. Mas estava aparentado com senhores de engenho, votava na chapa do governo, merecia a confiança do chefe político – e achou-se capaz de julgar.
        Naquele tempo, e depois, os cargos se davam a sequazes dóceis, perfeitamente cegos. Isto convinha à justiça. Necessário absolver amigos, condenar inimigos, sem o que a máquina eleitoral emperraria.
        [...]
        Venta-Romba pedia esmola, gemendo uma cantilena, indiferente às recusas:
        --- Como vai, seu Major? E a mulher de seu Major? Os filhinhos de seu Major?
       A voz corria mansa; as rugas da cara morena se aprofundavam num sorriso constante; o nevoeiro dos olhos se iluminava com estranha doçura. Nunca vi mendigo tão brando. A fome, a seca, noites frias passadas ao relento, a vagabundagem, a solidão, todas as misérias acumuladas num horrível fim de existência haviam produzido aquela paz. Não era resignação. Nem parecia ter consciência dos padecimentos: as dores escorregavam nele sem deixar mossa.
        --- Como vai, seu Major? Os filhinhos de seu Major?  
        Humildade serena, insignificância, as mãos trêmulas e engelhadas, os pés disformes arrastando as alpercatas, procurando orientar-se nas esquinas, estacionando junto dos balcões. Restos de felicidade esvaíam-se nas feições tranquilas. O aió sujo pesava-lhe no ombro; o chapéu de palha esburacado não lhe protegia a cabeça curva; o ceroulão de pano cru, a camisa aberta, de fralda exposta, eram andrajos e remendos.
        Aparecia uma vez por semana, às sextas-feiras, quando se realizava a caridade: um pires de farinha nas casas particulares, um vintém nas lojas e nas bodegas. Mas as famílias de lojistas e bodegueiros não exerciam a caridade, porque isto seria redundância.
        --- Peça na venda.
        Tínhamos ordem para afastar os peditórios.
        Uma sexta-feira Venta-Romba nos bateu à porta. Deve ter batido: Não ouvimos as pancadas. Achou o ferrolho e entrou, surgiu de supetão na sala de jantar, os dedos bambeando no cajado. As moças assustaram-se, os meninos caíram em grande latomia.
        --- Vá-se embora, meu senhor, disse a patroa.
        A distância, esse tratamento de meu senhor a uma criatura em farrapos soa mal. Era assim que minha mãe se expressava dirigindo-se qualquer desconhecido. Trouxera o hábito da fazenda, e isto às vezes não revelava polidez. Em tons vários, meu senhor traduzia respeito, desdém ou enfado. Agora, com estridência e aspereza, indicava zanga, e a frase significava, pouco mais ou menos:
        ---Vá-se embora, vagabundo.
        Venta-Romba perturbou-se, engasgou-se, apagou o sorriso; o vexame e a perplexidade escureceram-lhe o rosto; os beiços contraíram-se, exibindo as gengivas nuas.
        --- Sinha dona... murmurou.
        Com certeza buscava explicar-se. Interjeições roucas e abafadas escapavam-lhe; os olhos baços percebiam o terror das crianças e arregalavam-se aflitos.
        Minha mãe era animosa. Atirava, montava, calejara na vida agreste. Certo dia um Coronel lhe entrou subitamente na cozinha, lívido, rogando-lhe que o escondesse da polícia: trancou-o num quarto, guardou a chave, tomou as primeiras medidas necessárias à fuga. Não precisava que o marido, pessoa débil, viesse enxotar Venta-Romba. Mas expediu o moleque José com um recado e plantou-se junto à mesa, áspera, silenciosa, os cantos da boca repuxados, a mancha vermelha da testa muito larga.
        Diante dela, o pobre intentava aliviar a impressão má, e cada vez mais se confundia; deixou passar o momento de retirar-se. Coçara a cabeça, gemia desculpas asmáticas, e ninguém o escutava. Num arranco de impaciência, bateu com o pau no tijolo, agravou a balbúrdia. A severidade vincou o rosto da mulher; as moças cochicharam rezando e fixaram a atenção na entrada do corredor.
        Nesse ponto chegou meu pai. Chegou alvoroçado, branco, e logo se fortaleceu, pôs-se a interrogar Venta-Romba, que desabafou, estranhou a desordem: implicância dos meninos, gritos, choro, a dona sisuda, as doninhas arrepiadas. Fuzuê brabo à toa, falta de juízo. Graças a Deus, tudo se alumiava. Descobriu-se, despediu-se, caminhou de costas:
        --- Adeus, seu Major.
        Meu pai atalhou-o. Antes de qualquer sindicância, tinha-se resolvido. Enganara-se com os exageros do moleque, enviara um bilhete ao comandante do destacamento. A fraqueza o impedia a decisões extremas. Imaginara-se em perigo. Reconhecia o erro, mas obstinava-se. Misturava o sobressalto originado pela notícia ao enjoo que lhe causava a figura mofina – e desatinava. Propendia a elevar o intruso, imputar-lhe culpa e castiga-lo. De outro modo, o caso findaria no ridículo.
       --- Está preso, gaguejou, nervoso, porque nunca se exercitara naquela espécie de violência.
        Alguém tossiu na sala, um boné vermelho apareceu no fim do corredor. Insensível, Venta-Romba tropicava como um papagaio, arrimava-se penosamente à ombreira da porta. Deteve-se, largou uma exclamação de surpresa e dúvida. E quando a frase se repetiu, balbuciou descorado:
       --- Brincadeira de seu Major.
       Espalhou a vista em roda: o barulho das crianças fora substituído por uma curiosidade perversa; as moças tremelicavam na costura; a face de minha mãe expunha indiferença imóvel; um sujeito passeava na sala de visitas, exibindo pedaços da farda vistosa. Claro que não era brincadeira, mas o velho, estonteado, não alcançava o desastre. Arredou-se da porta, encostou-se à parede, esboçou um movimento de defesa. Se não fosse banguelo, rangeria os dentes; se os músculos não tivessem lassos, endureceria as munhecas, levantaria o cajado. Impossível morder ou empinar-se; o gesto maquinal de bicho acuado esmoreceu; devagar, a significação da palavra rija furou, como pua, o espírito embotado. E emergia da trouxa de molambos uma pequena flácida:
        --- Por quê, seu Major?
        Era o que eu também desejava saber. À janela, distraindo-me com o voo das abelhas e o zunzum do cortiço pendente no beiral, vira o espalhafato nascer e engrossar em minutos. Não haviam colaborado nele – e a interrogação lamentosa me abalava. Por quê? Como se prendia um vivente incapaz de ação? Venta-Romba movia-se de leve. Não podendo fazer mal, tinha de ser bom. Difícil conduzir aquela bondade trôpega ao cárcere, onde curtiam pena os malfeitores.
        --- Por quê, seu Major?
        O cochilo renovado ficou sem resposta. Seu Major não saberia manifestar-se. Assombrara-se, recorrera à força pública e receava contradizer-se. Talvez sentisse compaixão e se reconhecesse injusto. Enraivecia, acusava-se e despejava a cólera sobre o infeliz, causa do desarranjo. Em desespero, roncou injúrias. O polícia que pigarreava na sala se avizinhou, a blusa desabotoada, faca de ponta à cintura, as reiúnas de vaqueta ringindo.
        Vinte e quatro horas de cadeia, uma noite na esteira de pipiri, remoques dos companheiros de prisão, gente desunida. Perdia-se a sexta-feira, esfumava-se a beneficência mesquinha. Como havia de ser? Como havia de ser o pagamento da carceragem?
        Venta-Romba sucumbiu, molhou de lágrimas a barba sórdida, extinguiu num murmúrio a pergunta lastimosa. O soldado ergueu lhe a camisa. Segurou o cós do ceroulão, empunhou aquela ruína que tropeçava, queria aluir, atravessou o corredor, ganhou a rua.
        Fui postar-me na calçada, sombrio, um aperto no coração. Venta-Romba descia a ladeira aos solavancos, trocando as pernas, desconchavando-se como um judas de sábado de aleluia. Se não o agarrassem, cairia. O aió balançava; na cabeça desgovernada os vestígios de chapéu iam adiante e vinham atrás; as alpercatas escorregavam na grama.
        Eu experimentava desgosto, repugnância, um vago remorso. Não arriscara uma palavra de misericórdia. Nada obteria com a intervenção, certamente prejudicial, mas devia ter afastado as consequências dela. Testemunhara uma iniquidade e achava-se cúmplice. Covardia.
        Mais tarde, quando os castigos cessaram, tornei-me em casa insolente e grosseiro – e julgo que a prisão de Venta-Romba influiu nisto. Deve ter contribuído também para a desconfiança que a autoridade me inspira.

                                       Graciliano Ramos. Infância. Rio de Janeiro:
                                                                       Record, 1976. p. 222-9.
Interpretação do texto:
1 – O texto é narrado em primeira pessoa. Comente a importância disso.
      O texto é autobiográfico; o narrador resgata fatos de sua infância para relatar fatos que vem, no momento da narrativa, carregados de emoção e revolta. Com o narrador em primeira pessoa, esses sentimentos fluem com mais intensidade.

2 – Que palavra, na primeira linha do texto, antecipa para o leitor uma informação negativa a respeito da atividade do pai do narrador?
      Emprego de juiz.

3 – Observe esta passagem do segundo parágrafo:
       “Naquele tempo, e depois, os cargos se davam a sequazes dóceis, perfeitamente cegos. Isto convinha à justiça. Necessário absolver amigos, condenar inimigos, sem o que a máquina eleitoral emperraria”.
a)    Supondo que naquele tempo signifique o tempo em que o narrador era criança, a que tempo estaria se referindo com e depois?
Provavelmente se refere ao tempo em que já é adulto e que não está muito longe do nosso tempo (Graciliano Ramos faleceu em 1953).

b)   O adjetivo cegos é usado para caracterizar as pessoas que exerciam cargos importantes? (Observe, ainda, o adverbio: perfeitamente.)
Ele faz uma referência à imagem da justiça, que é cega, imparcial; já o pai do narrador deveria ser cego apenas quando fosse conveniente.

c)   Em “Isto covinha à justiça”, a qual justiça o narrador se refere?
À justiça (ou injustiça) praticada pelos poderosos: pelos donos das terras e senhores de engenho.

d)   O que seria a máquina eleitoral? O que poderia fazê-la emperrar?
A máquina eleitoral seria a garantia de continuidade de determinadas pessoas no poder. Juízes imparciais poderiam atrapalhar esses planos; daí a necessidade de manter nos cargos importantes apenas os amigos.

4 – Releia a descrição de Venta-Romba.
a)   Se não era resignação, o que o fazia comportar-se daquela maneira?
Uma espécie de paz, adquirida após tantos anos de sofrimento.

b)   Que motivos tinha para manter o sorriso constante?
Nenhum. Porém, já não se dava conta de nada; vivia como que num outro mundo, indiferente a tudo.

c)   Por que chamava a todos de Major?
Era uma forma de mostrar subserviência. Major, sendo alto posto do exército, revela um certo respeito a essa instituição e lisonjeia quem é assim chamado, algo parecido com o título de “coronel” atribuído aos chefões políticos do nordeste brasileiro.

d)   Por que é comparado a Judas de sábado de aleluia?
Assim como Judas (aquele boneco que se costuma queimar no sábado de aleluia), Venta-Romba foi alvo de um ataque. Ele recebeu sobre si a culpa e a condenação de algo que não fez, o castigo por uma decisão tomada equivocadamente por um juiz pusilânime. Em última análise, ele foi sacrificado por ser um mendigo.

5 – Ao reler as afirmações: “Nunca vi mendigo tão brando.”, “misérias acumuladas num horrível fim de existência”, observe que elas têm um peso enorme na narrativa.
a)   Por quê?
O ato de ele ser um mendigo inofensivo torna ainda mais indigna a injustiça sofrida por ele.

b)   Se Venta-Romba era conhecido nas redondezas, qual a razão do susto e da latomia da família?
Na verdade, não havia razão. As pessoas podem ter-se sentido incomodadas pelo fato de não terem ouvido o mendigo bater e, de repente, viram-se frente a frente com a desagradável figura. Ele não se retirou quando deveria e essa atitude agravou ainda mais a “invasão”.

6 – “... Vá-se embora, meu senhor, disse a patroa”.
a)   Não teria sido mais natural usar “mina mãe” em lugar de “patroa”, uma vez que o texto é narrado em primeira pessoa?
Ele quis reforçar o gesto da patroa, da dona da casa, que foi ríspido, não condizente com a postura de uma mãe.

b)   Por que alguém usaria a expressão “meu senhor” no lugar de “vagabundo”?
Alguém que quisesse ser irônica, que tivesse a intenção de transmitir exatamente o contrário do que diriam suas palavras.

7 – Apesar de ter condições de resolver o problema sozinha, por que a mãe mandou chamar o marido? Qual a importância, na narrativa, do trecho relacionado ao “Coronel”?
      Talvez para sentir-se mais seguro ou para mostrar ao mendigo que ele se arrependeria por não ter obedecido à ordem de retirar-se imediatamente. O trecho que faz referência ao Coronel enfatiza que a mãe fora precipitada com Venta-Romba: a mesma pessoa que agora hostilizava o mendigo e pedia ajuda ao marido fora capaz de dar cobertura a fuga de um outro homem, sem consultar ninguém.

8 – Revendo a personagem Venta-Romba, responda:
a)   Venta-Romba não consegue explicar-se, desfazer o equívoco. Por quê? Ter permanecido na casa foi uma decisão acertada?
Ele se sente constrangido, indignado. Mas sua dificuldade em expressar-se o impede de desculpar-se e sair. Ele tomara a decisão errada ao resolver ficar.

b)   Quando julgava poder esclarecer tudo, o mendigo vê sua situação piorar ainda mais. Por quê?
Achou que já se explicara ao dono da casa; não contava com o fato de este ter chamado a polícia.

9 – Que atitude do pai do narrador foi pior do que ter chamado a polícia antes de saber o que acontecia?
      Não ter voltado atrás em sua decisão. Ao ver que se tratava de Venta-Romba, podia ter dispensado a polícia, mas achou que isso o desmoralizaria.

10 – Que aspectos são realçados na descrição do policial?
      Aspecto que buscam mostrar o abuso de autoridade: botas fazendo barulho, faca à mostra, farda em desalinho, o pigarrear de quem quer se fazer notar.

11 – Segundo o narrador, o que há por trás da arbitrariedade das pessoas?
      Fraqueza, insegurança, o fato de sentirem-se ameaçadas.

12 – Procure no texto todos os adjetivos usados para caracterizar o pai do narrador. O que você nota?
      Ele é exatamente assim: fraco e inseguro.

13 – Quando, finalmente, o narrador se coloca favorável a Venta-Romba? Por que pareceu ao narrador absurda a ideia de colocar o mendigo numa cadeia?
      Quando o mendigo questiona por que está sendo preso. Nesse momento, o narrador também quer saber o motivo. Venta-Romba era a bondade em pessoa e, no cárcere, só havia malfeitores.

14 – “... Por quê, seu Major?” A atitude do mendigo nesse momento lhe pareceu resignada, digna ou acintosa?
      Digna.

15 – Seu Major era parte da cantilena de Venta-Romba, e a todos ele se dirigia assim. Como se explica, entretanto, que a expressão seja incorporada ao texto, como, por exemplo, em: “Seu Major não saberia manifestar-se”?
      Ele toma o partido do mendigo e trata o pai como se fosse um estranho, cuja atitude, na verdade, desaprova totalmente.

16 – O narrador está desgostoso, mas, covardemente, nada faz em defesa do injustiçado. Por quê?
      Ele sabe que, se agisse em defesa de Venta-Romba, seria duramente castigado. Além disso, de nada adiantaria sua intervenção. As crianças, nessa época, não eram ouvidas.

17 – Em que esse incidente influenciou a formação da personalidade do narrador? Em que influenciou você?
      O incidente fez o narrador crescer desconfiando de toda autoridade. De uma certa forma, ele se “vingou” do pai, revelando publicamente o fato. Todos que o leem passam a reavaliar ou a reconsiderar sua opinião sobre as “autoridades”.



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