terça-feira, 20 de outubro de 2020

CONTO: O CORAÇÃO COMIDO - PARTE II - GILLES MASSARDIER - COM GABARITO

 Conto: O coração comido – parte II

          Gilles Massardier

        Levei vários minutos para entender e forçar o engenhoso mecanismo da passagem secreta. Finalmente ela se abriu, com muitos rangidos e estalos, revelando uma escada de pedra em caracol, que mergulhava nas trevas; Escutei atentamente: reinava um silêncio mortal. Acendi uma tocha no braseiro e enveredei, todos os meus sentidos alertas, pela passagem, fechando a porta atrás de mim. Tinha a impressão de entrar num túmulo.

        Após uma descida que me pareceu interminável, desemboquei numa estreita tripa de pedra cujas paredes suavam de umidade e fediam a mofo. Eu devia estar nas entranhas do castelo. Uma corrente de ar glacial atravessou o tecido rústico do meu hábito. Arrepiei-me todo. Avancei lentamente rente as paredes, tendo como única luz a da minha tocha, tomando cuidado para não cair em algum alçapão.

        Meus nervos estavam no auge da tensão; o sangue palpitava em minhas têmporas.

        O arrastar das minhas sandálias nas lajotas repercutia de parede em parede, enchendo a passagem de ecos. Eu fazia mais barulho do que vinte homens juntos.

        Aquilo me tranquilizava e, ao mesmo tempo, me inquietava.

        O corredor bifurcou à direita, depois à esquerda, depois novamente à direita, antes de dar numa sala fechada por três portinhas. Abri a que estava à minha frente e passei por ela: dava num corredor, pelo qual segui. Ao fim de uma centena de metros, cheguei a uma segunda sala, também ela com várias portas. As passagens e os entroncamentos se multiplicavam infinitamente: eu estava num labirinto! Não tinha a menor intenção de abandonar minhas investigações, mas o risco de me perder naqueles subterrâneos não me entusiasmava nem um pouco. Eu tinha de tomar certas precauções, antes de aventurar-me mais profundamente por ali.

        Minhas mãos remexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo.

        Animado com a descoberta, continuei meu caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz nas paredes, a fim de marcar minha passagem. Mas a reserva de tinta não demorou a acabar. Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que eu tomara terminou num beco. No fundo, percebi uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa. Após um momento de hesitação, aproximei-me. Um corpo banhava numa poça de sangue coagulado. A julgar pela rigidez cadavérica e pelo estado de decomposição, a morte devia remontar a mais de um dia, talvez dois. Tinha sido espancado brutalmente: estava coberto de ferimentos. O mais horrível, porém, era o enorme buraco no lado esquerdo do peito. Tinham arrancado seu coração!  Diante de tamanha abominação, meus cabelos ficaram em pé.

        Uma viela despedaçada, bem como as páginas ensanguentadas e rasgadas de um pequeno manuscrito, estavam espalhadas ao lado do cadáver. Peguei uma das folhas de pergaminho e decifrei seu conteúdo: o fragmento de um conto cortês que não pude identificar. A verdade revelou-se, terrível: eu havia encontrado o namorado de Béatrice!

        Subi o mais depressa que minhas pernas e o meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão. Nesse instante, uma voz sonora me fez estremecer:

        “Ora, vejam só, frei Adalbert! Visitando o castelo, irmão?”

        Giraud de Valgaillard me encarava. Medi então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento, a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas sangrentas que trouxera da masmorra.

        Passado o primeiro instante de estupor, recobrando o controle, sustentei seu olhar e acusei-o:

        “Eu sei de TUDO, senhor Giraud! O senhor é um ASSASSINO!”

        “Bravo! Bela réplica, frei Adalbert! Está ensaiando para um mistério?”, ele me interrompeu ironicamente.

        Sua boca contraiu-se num riso cruel.

        “Chegou na hora certa, frei Adalbert. Eu queria mesmo me confessar...”

        Fingi não entender.

        “Frei Adalbert, confesse-me!”, disse ele com uma voz sibilante, apontando para um banco.

        A cólera contida arroxeava os arranhões que marcavam sua bochecha esquerda. Sus olhos giravam loucamente nas órbitas.

        De repente sua fisionomia se aplacou; sua voz tornou-se suplicante:

        “Frei Adalbert, o senhor não pode recusar...”

        Impotente, sentei-me diante dele, pronto para ouvir a longa lista dos seus pecados.

        “O senhor certamente sabe que um fazedor de versos seduziu sua aluna, minha querida filha. Calarei as circunstâncias do encontro dos dois para entrar logo no assunto. O amor é cego, cego e imprudente... Ah, que tolos! Será que acreditavam mesmo que sua paixão nunca seria descoberta? Que eu permitiria uma aliança descabido como aquela? Anteontem, peguei em flagrante os dois pombinhos, que Agnès mimava. Com meus homens, agarrei o amante da minha filha e prometi a ela que o baniria de minhas terras sem fazer-lhe nenhum mal. Na verdade, mandei leva-lo para os subterrâneos do castelo, matei-o e, com minhas próprias mãos, arranquei-lhe o coração.”

        Ontem, fui ver minha filha em seu quarto.

        “Minha criança, eu lhe perdoo esse namorico. Como prova da minha sinceridade, você e esse... rapaz serão meus convidados de honra, esta noite mesmo.”

        “Deixei-a entregue a sua alegria recobrada, inconsciente da minha perfídia, e desci quatro a quatro os degraus que levam às dependências de serviço do castelo.”

        “Preparem a sala principal! Ponham a mesa com uma toalha branca bordada e a baixela de prata! Andem! Criados, cozinheiros, ao trabalho!”.

        “Enquanto os preparativos do banquete iam de vento em popa, chamei à parte meu cozinheiro e entreguei-lhe o coração do moço:

        “Tome! Prepare-o a seu modo. Conto com você para fazer com ele um prato saboroso, digno de uma rainha. Vai servi-lo esta noite à minha meiga filha”.

        “Chegada a hora, um serviçal anunciou o jantar com um toque de trompa. Lavamos as mãos antes de nos sentarmos à mesa. Béatrice, é claro, espantou-se ao não ver o amado.”

        “Pai, onde está ele? Por que ainda não está aqui?”

        “Calma, querida! Ele já vem. Em carne... Mandou dizer que chegará atrasado.”

        “Eu não estava com o menor apetite naquela noite, em compensação não parei de esvaziar minha taça e logo me embriaguei.”

        “De ótimo humor, minha filha provou um pouco de cada prato. Adora o coração ensopado, que repete até acabar o prato. Esquecendo-se das boas maneiras, lambe os dedos úmidos de molho.”

        “Pai, que delícia estava essa carne!!”

        “Não me espanta que tenha apreciado esse prato. Você não podia deixar de saborear, guisado e temperado, o que você adorava vivo e palpitante.”

        “Desculpe, não estou entendendo. O que o senhor me deu para comer?”

        “Minha filha, esta carne que tanto lhe agradou, outra coisa não era que o coração do seu namorado. O lindo coração lhe serviu de alimento. Aqui está a prova do que digo: o anel que tirei do cadáver do seu trovador. Ó delícias do amor!”

        “A náusea se apodera da minha filha, que se curvou para o chão e vomita. Depois, enfurecida, precipita-se sobre mim, unhas à mostra. Uma saraivada de socos e arranhões se abate sobre meu rosto e meu peito, mas continuei a zombar:”

        “Ele não queria lhe dar o coração? O desejo dele foi satisfeito! Melhor ele não podia esperar. Agora vocês estão reunidos. Você consumiu o seu amor. Devorou-o com apetite!”

        “De repente, ela se acalma; seus punhos pararam de me bater. Seu rosto perde a expressão. Suas mãos põem-se a rodopiar como se tocassem um instrumento imaginário, enquanto ela entoa uma cantilena obsessiva. Sua razão fraqueja. Ela promete ir ao encontro do amado... Presa do delírio, foge da sala. Corre para as galerias superiores e atira-se no vazio. Morreu louca e amaldiçoada.”

        “Pronto! O senhor agora sabe de toda a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio. Quem irá cobrar por meus atos?”

        Nenhuma palavra de arrependimento, nenhum remorso saiu dos lábios do senhor Giraud. Ele até se orgulhava do seu feito! Apavorado, fugi do castelo, deixando o castelão impune.

        Dez anos se passaram desde esses terríveis acontecimentos. Soube recentemente que o Senhor Giraud de Valgaillard multiplicara suas peregrinações, antes de morrer combatendo na oitava cruzada. Sua morte foi heroica, dizem. Ele teria entrado no sangrento corpo a corpo berrando como um possesso: “Béatrice! Deus! Perdão!” Não era um grito de guerra.

        Eu, Adalbert, frade, sei da falta da qual ele tentava redimir-se, em vão. Que Deus, Nosso Senhor Onipotente, tenha piedade da sua alma!

Adaptado de Gilles MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 22-7.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Dédalo: labirinto.

·        Impune: sem punição.

·        Mistério: peça de teatro com tema religioso.

·        Pasto: comida, alimento.

·        Perfídia: ação traiçoeira, desleal.

02 – O tom do mistério caracteriza grande parte do conto, graças a alguns recursos usados. Entre os elementos do gênero conto dados abaixo, quais contribuem para a criação do clima de mistério em “O coração comido”?

a)   A narração em primeira pessoa.

b)   A caracterização do espaço.

c)   A narração em tempo cronológico.

d)   A narração em tempo psicológico.

e)   A época em que se deram os acontecimentos.

f)    As características das personagens.

g)   O enredo.

03 – Uma fórmula narrativa é uma espécie de modelo que muitos autores usam para contar uma história. Pode-se afirmar que “O coração comido” segue uma fórmula? Dê exemplos que justifiquem sua resposta.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A caracterização dos espaços sempre escuros ou sombrios, o início com um acontecimento trágico e inexplicável são elementos comuns a qualquer conto de mistério.

04 – A descrição é fundamental na construção de um conto de mistério; é por meio dela que o leitor tem a possibilidade de imaginar as personagens e os lugres descritos. Se a descrição for eficiente, poderá garantir a tensão necessária ao desenvolvimento do enredo, até o momento do desfecho. Releia os parágrafos de 2 a 5 e indique no caderno os elementos do ambiente responsáveis por manter o leitor em expectativa.

      O fato de a escada estar totalmente escura, sendo iluminada apenas pela tocha que o frei carrega; as várias bifurcações do corredor; as salas com mais de uma porta; os corredores imensos; as passagens e os entroncamentos.

05 – A partir do momento em que frei Adalbert adentra as entranhas do castelo, uma sequência de situações aumenta a tensão criada no conto. Observe que para criar essa tensão o narrador destaca a ausência de controle da personagem sobre os acontecimentos e, além disso, provoca no leitor uma expectativa em relação às soluções adotadas. Entretanto, para garantir a tensão, todas as expectativas deverão ser frustradas. Observe:

        “Minhas mãos remexeram nervosamente as dobras do meu hábito e tiraram dele um tinteiro de chifre, que por sorte esquecera de guardar na biblioteca. Ele ia ser utilíssimo.

        Animado com a descoberta, continuei meu caminho naquele dédalo de túneis e corredores, desenhando com os dedos uma cruz nas paredes, a fim de marcar minha passagem.”

·        Expectativa criada no leitor: O leitor imagina que o narrador-personagem, com esse recurso, vai poder percorrer o labirinto em segurança, sem o perigo de perder-se.

·        O que acontece: A tinta acaba, e o narrador-personagem, furioso, pensa em voltar antes de concluir a investigação.

Agora complete no caderno:

a)   Furioso, pensei em voltar, quando o corredor que eu tomara terminou num beco.

·        Expectativa criada no leitor: O leitor imagina que talvez frei Adalbert volte para o quarto do barão e deixe para depois as investigações.

·        O que acontece: Frei Adalbert depara com uma forma encostada na parede, sentada, imóvel, silenciosa.

b)  Subi o mais depressa que minhas pernas e os meandros do labirinto permitiam. Emergi enfim nos aposentos do barão.

·         Expectativa criada no leitor: O leitor é levado a acreditar que o frei, agora com as provas do crime, denunciará o barão pela atrocidade que cometeu ou que o barão matará o frei.

·        O que acontece: O barão estava em seus aposentos e aguardava o frei.

06 – A reação do frei Adalbert ao encontrar o barão a sua espera reforça a tensão narrativa:

        “Medi então toda a minha imprudência. Fiquei petrificado, incapaz de um só movimento, a língua colada ao céu da boca, as pernas trêmulas. Larguei as folhas sangrentas que trouxera da masmorra.”

a)   Frei Adalbert tinha motivos para sentir medo do barão?

Sim, pois vira do que o barão era capaz. Além disso, sabendo que o frei tomara conhecimento do assassinato do trovador, o senhor de Valgaillard poderia tentar mata-lo para não ser denunciado.

b)   O barão, no entanto, quebra a expectativa do narrador-personagem e a do leitor. Explique a estratégia adotada pelo barão para se livrar da acusação de frei Adalbert.

O barão resolve confessar tudo o que fizera, assim teria a garantia do silêncio do frei. “Pronto! O senhor agora sabe de toda a história, frei Adalbert. Mas para que servirá saber, se não pode contar nada a ninguém? O segredo da confissão condena o senhor ao silêncio.”

07 – O relato do barão revela mais do que sua personalidade assassina. Explique essa afirmação apresentando informações do texto.

     O barão, além de assassino, era frio e sádico, pois fora capaz não só de assassinar o namorado da filha, mas de agredi-la e humilhá-la fazendo-a comer o coração do amado.

08 – Ao final da confissão do castelão, o que mais surpreende o frei?

      O fato de o barão não parecer sentir remorso, não se mostrar arrependido do que fez. Ao contrário, até se orgulhava do que fizera.

09 – O desfecho do texto (penúltimo parágrafo) faz referência a um comportamento surpreendente do barão. Ao relatá-lo, o narrador sugere ter havido uma grande mudança no comportamento do pai de Béatrice.

a)   Que mudança foi essa?

O barão arrependeu-se do que fez.

b)   O que o barão resolveu fazer para aplacar esse novo sentimento?

Lutar nas cruzadas.

 

 

CONTO: O CORAÇÃO COMIDO - PARTE 1 - GILLES MASSARDIER - COM GABARITO

 Conto: O coração comido – parte 1

  Gilles Massardier

        Pam, pam, pam...  As batidas insistentes abalavam a porta do meu quarto. Pus o livro de orações em cima da mesinha bamba.

        Ouvi gritos:

        “Frei Adalbert, abra! Depressa! Oh, meu Deus!”

        Mal corri o ferrolho e entreabri a porta, uma mulher gorda, aflita, entrou no aposento. Seu rosto estava branco como um lençol. Puxou a manga do meu hábito, suplicando que fosse com ela. Percebendo a gravidade da situação, precipitei-me para fora do quarto.

        O pátio, iluminado pelas tochas, estava em efervescência. As pessoas formavam um semicírculo em torno de um corpo que eu mal conseguia ver. Ninguém ligava para a garoa. Uma velhinha rezava, ajoelhada numa poça. Fórmulas mágicas apenas murmuradas respondiam aos sinais da cruz. À minha chegada, a aglomeração se dispersou. Li em todos os rostos a estupefação e o horror, a incompreensão e a piedade. Senti um aperto no coração enquanto baixava os olhos para o corpo inanimado. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua túnica de linho verde. Um sapato de feltro jazia a alguns centímetros do pé nu. Apesar do ângulo esquisito que sua cabeça fazia com o busto e do sangue que manchava seus cabelos louros, Béatrice ainda era bonita.

        Bruscamente, a torrente das lembranças submergiu-me. Lembrei-me de nossos primeiro encontro, sete meses antes. Eu havia sido enviado por meu superior ao senhor Giraud de Valgaillard, um dos protetores da nossa ordem, a fim de completar a educação de sua filha Béatrice. Sua falecida mãe fizera dela uma boa cristã e uma excelente dona de casa. Mas o barão ambicionava elevar o nome da família casando-a com o melhor partido possível. Em vista disso, ele queria que ela aprimorasse o conhecimento do latim, língua dos poderosos deste mundo, assim como da música e da literatura. Sua graça natural e seus novos talentos deviam abrir-lhe as portas douradas das cortes da França ou da Inglaterra.

        Numa bela tarde de primavera, seu pai levara até ela, num pomar junto da velha morada senhorial. O ar recendia a lilás, narciso e pilriteiro. O forte perfume dessas flores subia-me à cabeça. Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador, num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar, acompanhando-se à harpa.

        O chiado dos nossos passos no cascalho fez as moças se virarem e seus companheiros de canto revoarem numa onda de penas. Ela era radiante, a mais bela criatura que Deus já pôs na terra! Uma fada com uma pele de inigualável alvura. Seus pômulos altos, seu olhar sorridente e sua boca viva, cujos lábios carmim entreabertos deixavam ver seus dentes de pérola, davam-lhe um ar de atrevimento irresistível. A simplicidade do seu vestido de linho (...) realçava sua beleza natural.

        O véu do passado rasgou-se. Pouco a pouco as recordações estufaram-se. Voltei a mim. Um guarda me relatava:

        "Ela saiu correndo pelas galerias superiores; depois, sem um grito, jogou-se no vazio. Não pude fazer nada”.

        Aquela revelação foi como um soco na boca do estômago. Por pouco não desmaiei. Por que motivo Béatrice decidiu pôr fim a seus dias? Esse pensamento me revoltava.

        “Onde está o senhor Giraud? Por que não está aqui?”, exclamei, sacudindo o sentinela como se o rapaz fosse uma ameixeira.

        “Ele se trancou em seus aposentos... Ninguém tem coragem de perturbá-lo...”.

        Virei-me sem prestar mais atenção nas suas palavras e pedi que transportassem a defunta para seu leito.

        Uma vez à sua cabeceira, mandei que a lavassem. Foi nesse instante que notei a ausência de um anel de esmeralda do qual ela nunca se separava: era uma lembrança da mãe. Perplexo, examinei atentamente suas mãos. Descobri debaixo das unhas fragmentos de carne e um fio púrpura que não provinha nem da sua roupa nem da colcha avermelhada sobre a qual ela jazia. Notei também manchas de molho e de vômitos em sua túnica.

        Meu cérebro fervia de tantas perguntas. Eu não conseguia explicar nem a ausência do barão nem minhas descobertas. Tudo aquilo era estranho, muito estranho. Pouco a pouco formei a convicção de que a morte da minha aluna ocultava um terrível segredo. Prometi-me descobri-lo. Dei algumas orientações para que preparassem o corpo para sua derradeira viagem, depois desci precipitadamente a escada que levava à grande sala senhorial.

        Sua porta dupla de largos batentes entreaberta. Parei um segundo e corri os olhos pela vasta peça. Estava tal qual a deixáramos desde o jantar. As últimas achas acabavam de consumir-se na monumental lareira, enquanto a cera das velas escorria ao longo dos grandes candelabros de prata. Uma poltrona derrubada quebrava a bela ordem do lugar. Inspecionei cada canto, cada móvel, começando pela mesa.

        Ainda estava repleta dos pratos mais diversos. Fora posta para três comensais. Mas somente duas taças – a do senhor e a de sua filha – haviam sido utilizadas: um pouco de tanino permanecia no fundo de cada uma delas.  Béatrice e seu pai teriam esperado em vão uma visita? Outro detalhe me perturbava: uma só fatia de pão estava embebida de molho – um molho igual ao que eu tinha encontrado na túnica da morta.

        No chão, perto da poltrona derrubada, notei sinais de vômito. De quatro, sondei o assoalho. Debaixo da mesa, descobri o anel de esmeralda perdido no vão entre duas tábuas.

       Revirei na minha cabeça os fracos indícios que possuía. Impossível encontrar um nexo lógico entre eles! Pensei então na dama de companhia e confidente de Béatrice: Agnès. Eu sabia dos vínculos de amizade que a uniam à minha aluna. Será que ela sabia de alguma coisa? A noite ia alta; resolvi então deixar para o dia seguinte meu encontro com Agnès.

        Naquela noite, tentei em vão dormir. Eram muitas as perguntas sem resposta que turbilhonavam o meu espírito. Deitado no colchão de palha, meus olhos relutavam em fechar-se, fixos no teto descascado. Só de manhãzinha é que consegui adormecer, exausto.

        Já passava da terça quando fui ter com Agnès em seu quarto. Sentada num tamborete, ela remendava uma comprida camisola. Ergueu para mim uma cara fechada, as pálpebras inchadas de tanto chorar. Depois desviou os olhos, continuando seu trabalho. Era evidente que Agnès não tinha a menor vontade de falar comigo. Peguei-a pelo queixo, forçando-a a olhar para a joia que eu lhe mostrava.

        “Agnès, reconhece este anel?”

        Como única resposta, o sangue sumiu do rosto da moça, e ela desmaiou em meus braços! Quando voltou a si, seus olhos encheram-se de lagrimas. Tentou em vão contê-las. Seu lábio superior era agitado por um tique nervoso, suas mãos tremiam.

        “Santa Mãe misericordiosa! O anel de... Eu sabia que aquilo acabaria mal...”

        Os soluços entrecortavam suas palavras, tornando-se quase inaudíveis.

        “Vamos, vamos, minha filha... Você tem que se controlar e contar-me tudo que sabe. Preciso saber a verdade.”

        Agnès enxugou as lágrimas e inspirou profundamente para deter a disparada do seu coração. Com uma voz frouxa, ela revelou-me que Béatrice conhecera pouco tempo antes um rapaz. Trovador, nobre, mas sem dinheiro, corria o mundo, vivendo da sua pena, da sua viela e da sua espada. O barão o convidara uma noite para vir cantar umas trovas. Seus versos impressionaram muito Béatrice, seu encanto a conquistou. Resumindo, a moça ficou loucamente apaixonada por ele. Por sua vez, o rapaz não ficou nem um pouco insensível à beleza de Béatrice – beleza que ele cantou diante de todos, para grande desprazer do castelão.

        Nas semanas que se seguiram, encontraram-se às escondidas, com a cumplicidade de Agnès. Para selar um amor eterno, Béatrice deu ao jovem cavalheiro seu precioso anel de esmeralda.

        Mas os dois pombinhos ficaram cada vez mais audaciosos e imprudentes. Tanto assim que o barão, que não tinha nada de bobo, ficou a par dos encontros.

        “Dois dias atrás”, revelou-me Agnès, “o senhor Giraud e seus homens apareceram no pomar. Diante dos olhos assustados da minha senhorinha, arrancaram seu amado de seus braços, jogaram-no no chão e espancaram-no sem dó nem piedade. Ela bem que tentou protege-lo com seu corpo, mas imobilizaram-na, segurando-lhe os pulsos nas costas. Béatrice conseguiu escapar do soldado e prosternou-se aos pés do pai, implorando-lhe que poupasse a vida do amado. Obteve do barão que o moço não fosse morto, apenas expulso de suas terras. Os guardas arrastaram o pobre coitado, pés e mãos amarrados, para fora do pomar... Não sei de mais nada. Desse dia em diante, não me deixaram mais aproximar-me dela.”

        “Por que não me contou nada?”, perguntei-lhe.

        Seus ombros cederam, ela mordeu os lábios.

        “Eu estava aterrorizada... O barão é um homem violento. Eu... não tive coragem.”

        Fiz o que pude para consolar Agnès antes de afastar-me, pensativo. Quer dizer então que uma simples, uma banal história de amor havia se transformado em um tragédia?

        Tentei reconstruir os últimos instantes de Béatrice. Na última ceia, feita em companhia de seu pai, ela parece ter perdido toda esperança de rever um dia o ser amado. Uma ideia desagradável teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua culpa. Aproveitei uma das suas ausências para me aventurar em seus aposentos.

        A luz do dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as paredes. Dei uma volta pelo quarto, vasculhei-o minunciosamente. Uma das tapeçarias tinha marcas de um desgaste anormal do lado esquerdo, na altura do ombro, como se fosse manipulada com frequência. Afastando com um gesto vivo o pesado tecido, descobri uma porta oculta.

Adaptado de Gilles MASSARDIER. Contos e lendas da Europa Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P.11-7.

Entendendo o conto:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Acha: pequeno pedaço de madeira usado como lenha.

·        Castelão: senhor feudal que vivia em castelo e administrava a justiça em sua região.

·        Falcoaria: arte da caça com falcões.

·        Historiado: decorado com personagens, geralmente de episódios das escrituras.

·        Jazer: encontrar-se; estar como morto.

·        Loa: elogio, louvor.

·        Tamborete: pequeno banco.

·        Terça: as 9 horas da manhã, de acordo com os rituais católicos.

·        Viela: antigo instrumento musical de cordas.

02 – Você acabou de ler a primeira parte do conto “O coração comido”. Resuma-a no caderno, em no máximo cinco linhas.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A jovem Béatrice, aluna de frei Adalbert e filha de um castelão poderoso, lança-se das galerias superiores do castelo node vive e morre. Intrigado com as causas do suicídio, o frei resolve investigar o caso. Agnès, ama de Béatrice, lhe dá algumas informações. O frei entra no quarto do barão.

03 – Ao longo da narrativa, fica clara a preocupação do narrador em não se limitar a contar os fatos. Com poucas palavras, ele faz referências ao ambiente onde acontecem as ações da história. Compare os trechos a seguir. Observe que cada um deles se refere a um momento diferente da história:

I – “O pátio, iluminado pelas tochas, estava em efervescência. [...] Ninguém ligava para a garoa. [...]. A moça estava deitada, imóvel, nas pedras do chão reluzentes da chuva. Uma leve brisa brincava nos véus que cobriam sua cabeça e franzia sua túnica de linho verde.”

II – “Numa bela tarde de primavera, seu pai levara até ela [...]. O ar recendia a lilás, narciso e pilriteiro. [...]. Um rouxinol e um melro entoavam loas ao sol. No centro desse jardim encantador, num banco de pedra, Béatrice ouvia sua dama de companhia cantar, acompanhando-se à harpa.”.

a)   Com qual fato vivenciado pelo narrador o trecho do primeiro quadro se relaciona? E o do segundo quadro?

O primeiro quadro está relacionado ao momento em que o narrador encontra Béatrice morta; O segundo apresenta um momento mais antigo, quando o narrador conhecera Béatrice.

b)   Que relação se percebe entre cada um desses ambientes e o fato que ocorre neles? O ambiente também está associado à situação das personagens Agnès e o senhor Giraud de Valgaillard.

O escuro da noite iluminado por tochas, a garota e uma leve brisa estão associados ao suicídio de Béatrice, um fato trágico. Já o primeiro encontro com a menina, um momento descontraído, em que ela está feliz, é relacionado à primavera, à luz do sol, ao canto dos pássaros, ao perfume das flores.

c)   Que tipo de ambiente está associado à ama Agnès antes da tragédia, isto é, onde ela se encontra no momento em que o narrador a apresenta? Qual deve ser seu estado de espírito nesse momento? E depois do suicídio?

Agnès é apresentada cantando e tocando harpa no pomar para Béatrice; pode-se pensar que esteja feliz, descontraída nesse momento. Depois da tragédia, frei Adalbert a encontra em seu quarto, chorosa e com medo da violência do senhor de Valgaillard.

d)   E o barão? Qual era sua situação sete meses antes do suicídio da filha? E logo depois da tragédia?

Sete meses antes da tragédia, o senhor de Valgaillard mostra-se um homem ambicioso, desejoso de ver a filha casada com algum nobre da corte da França ou da Inglaterra; após a tragédia, tranca-se em seus aposentos.

04 – Qual é a primeira informação que o leitor recebe sobre Béatrice?

      A informação de que ela está morta por ter se atirado das galerias do castelo de seu pai.

05 – Em seguida por meio da técnica do flashback, o leitor fica sabendo de acontecimentos anteriores da vida da moça. Portanto nesse conto o tempo é psicológico, e não cronológico. Lembrando que “O coração comido” é um conto de mistério, responda: teria sido adequado o uso do tempo cronológico?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Em um conto de mistério, o foco deve recair sobre as investigações, sobre a resolução do enigma, daí a adequação de iniciar a história pela morte de Béatrice.

06 – Qual a importância de empregar a técnica do flashback em um conto de mistério iniciado pelo fato que motivou a investigação?

      Voltar no tempo é fundamental para que as informações que explicam o acontecimento investigado venham à tona, dando sentido aos eventos narrados.

07 – Por meio de uma sequência de quadrinhos ou de frases, reconte a primeira parte de “O coração comido” usando o tempo cronológico.

      O frei é enviado ao castelo do senhor de Valgaillard para completar a educação da sua filha Béatrice; o frei conhece Béatrice; Béatrice conhece um trovador, e eles se apaixonam; o romance é descoberto pelo pai; Béatrice se atira das galerias superiores do castelo e morre; o frei é chamado e inicia suas investigações.

08 – Contado no tempo cronológico, esse conto de mistério conseguiria envolver o leitor?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: No tempo cronológico, o conto não seria tão envolvente.

09 – Ao longo da narrativa são adotados diversos tons: o trágico, o de perplexidade, o de equilíbrio e felicidade, o de mistério, o investigativo. Entre todos eles, no entanto, destacam-se os tons de mistério e o investigativo adotados pelo narrador-personagem a certa altura do texto.

a)   Que mistério ocupará os pensamentos do narrador-personagem, frei Adalbert?

A razão do suicídio de Béatrice é o mistério que intriga frei Adalbert, já que ela era uma moça feliz e cheia de vida.

b)   Em que momento da narrativa fica claro o tom investigativo da história?

No momento em que frei Adalbert, ao examinar as mãos da jovem morta, nota a ausência do anel de esmeralda.

10 – No caderno, faça um levantamento dos dados observados por frei Adalbert e que, na sua opinião, poderiam ajudar a desvendar o mistério.

      Resposta pessoal do aluno.

11 – Releia o depoimento de Agnès ao frei. Mentalmente, relacione o depoimento da ama aos dados anotados na questão 10 e a esta constatação de Adalbert:

        “Uma ideia desagradável teimava na minha cabeça: o barão não era homem de deixar viva uma pessoa capaz de arruinar seus projetos matrimoniais. Só que eu precisava obter provas da sua culpa.”

        Elabore uma hipótese que explique a causa da morte de Béatrice. Essa hipótese deve explicar todos os dados e as evidências encontrados por frei Adalbert.

      Resposta pessoal do aluno.

12 – Releia o trecho final da primeira parte do conto: “A luz do dia quase não passava pelas estreitas janelas do quarto, vasto e alto. No centro do cômodo, um braseiro ardia; suas chamas refletiam-se nos móveis à volta: uma enorme cama de madeira de lei, ladeada por baús finamente esculpidos com cenas de falcoaria. Tapeçarias historiadas, cada uma mais magnífica que a outra, cobriam as paredes.”

        Nesse trecho foi usado um recurso que revela o lado sombrio e sinistro do barão Valgaillard. Que recurso é esse?

      A descrição do espaço: os aposentos do barão quase não recebem luz, há no centro um braseiro cujas chamas refletem-se nos móveis. Trata-se de um ambiente que mistura luxo e mistério.

 

     

 

 

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

CONTO: TALISMÃ - IVAN ÂNGELO - COM GABARITO

 Conto: Talismã

               Ivan Ângelo

     Eu não teria seguido o homem pelas ruas nem presenciado as coisas que fez acontecer à sua passagem se ele não levasse sua flor – uma só, de longo caule, três folhas viçosas, vermelha: cravo –, se não a levasse com extremo cuidado, como coisa mais preciosa do que flor. Logo percebi que a estranheza do próprio homem contaminava a cena toda. Na cabeça, chapéu, cavanhaque, suíças, bigodes. Vestia um paletó justo de casimira cinza escura, colete de seda creme, jabô em vez de gravata, calças listradas de cós muito alto. Calçava borzeguins e polainas. Parecia ter saído de uma fotografia antiga e não tinha como voltar.

        As duas coisas juntas, a figura e o jeito como levava sua flor, não pareciam perturbar as outras pessoas, que passavam por elas como se aquilo acontecesse todos os dias às cinco horas da tarde de suas vidas. Indiferente por sua vez às pessoas, ele atravessava a avenida central com aquele seu jeito de não saber como se leva uma flor. O que o fazia diferente das outras pessoas que levavam flores era a concentração: ele mais tomava conta do que levava. Segurava-a na metade do caule com três dedos da mão esquerda; a mão direita, um pouco em concha, protegia-a. Como se fosse uma vela acesa! – era isso. O homem levava a flor como habitualmente se leva uma vela acesa: defendendo, prestando atenção, olhando a chama.

        Se fosse um buquê de rosas, uma corbelha, talvez não parecesse estranho, pode ser que eu não o tivesse percebido, ou que o considerasse apenas um desses atores sem emprego que hoje em dia levam mensagens vivas a um aniversariante. Se levasse uma rosa frágil, despetalável, talvez parecesse natural protege-la com tanto cuidado. Mas um cravo vermelho, taludo, viçoso... um só...

        Sem perceber, fui sendo envolvido, fui-me entrosando num curso de vida que não era o meu, não era o das coisas que me diziam respeito. Coisa feita: estava espreitando um homem que surpreendera num momento de exceção, invadia um outro mundo. Se ele fizesse um gesto banal, se cheirasse a flor, por exemplo, eu me libertaria: ah, é um homem qualquer com uma flor qualquer. Mas não: ele se movimentava com um encanto calculado, como um ator, e era eu a plateia. Ninguém mais parecia interessado. Diabos e anjos sabem para quem aparecem.

        Na tentativa de incluí-lo no mundo corriqueiro, costurei hipóteses. Enterro. Impossível: flor vermelha, uma só, um sorriso invisível. Namorada. Ia leva-la para uma namorada. Improvável: um homem com seu estilo mandaria um buquê, por mensageiro. Presente para a namorada. Possível, mas... um homem de uns sessenta anos, com aquelas roupas, parecia ridículo ou fora do papel se estivesse protegendo como preciosidade uma simples flor de namorada. Nada, nele, parecia ridículo. Bizarro, mas não ridículo. Levava-a para a esposa. Hipótese inadequada: maridos sabem que esposas não se contentam com um cravo único, querem buquê, e de rosas.

        Pode ser que à sua passagem já estivessem acontecendo pequenas mudanças de ordem, antes que eu percebesse, alterações imperceptíveis a olhos descuidados, como os meus até então, atentos mais à figura do que às suas circunstâncias. Quando me dei conta de que o sinal de trânsito abrira para ele e para os outros pedestres em tempo rapidíssimo, e que um segundo antes o homem como que erguera rapidamente o cravo e deixara de protege-lo por um momento, senti um arrepio e suspeitei que ele tinha feito aquilo acontecer, tinha apressado o sinal de pedestres. Suspeitei mais: que coisas como aquelas já vinham acontecendo e eu tinha me recusado a ver.

        Entrou em uma confeitaria. Lotada. Pude ver seus olhos a percorrer a vitrina, a lambiscar tortinhas, sequilhos, docinhos, à procura. Olhos cinzentos, como os de um cão siberiano. Mal encontrou – com um ah! – o que queria, materializou-se uma balconista solícita e saiu levando uma sacolinha pendurada no dedo, antes dos que já estavam lá há mais tempo. Na calçada, por onde eu tinha de avançar aos encontrões, davam-lhe caminho, gentis. Rostos preocupados desanuviavam-se à sua passagem. Parou aparentemente para prender as presilhas da polaina próxima a uma mendiga que amamentava um bebê mulato raquítico. O ritmo dos passantes, a pressa, o rumo, aparentemente não se alteravam, mas algo inusitado começou a acontecer naquele momento: atarefadas como abelhas, e com naturalidade como se fizessem aquilo todos os dias, as pessoas encheram em alguns instantes a cuia da mulher de moedas, anéis, notas altas. O homem da flor seguiu seu caminho depois de arrumar os sapatos, aparentemente alheio àquilo tudo. Andava com agilidade e graça diferentes da pressa cansada dos citadinos vesperais em fim de jornada. Novos eventos inesperados aconteciam no seu caminho. Um ônibus que atropelou um rapazinho e ia passando por cima dele parou de repente, travou, quebrou. A buzina do carro de um gorducho irritado com o trânsito que parou atrás do ônibus emudeceu contra a vontade dele. Desprovido da sua arma, o gorducho passou a dar socos no miolo do volante. Não aconteceu só com ele: nenhuma buzina soava. O rapazinho se levantou, reanimado, e tudo voltou a andar, junto. Ninguém parecia perceber que não havia acaso nesses acontecimentos. Sem dar na vista, o homem da flor com certeza se divertia pelo lado de dentro.

        Parou numa esquina, olhou para os três lados, não sei se escolhendo milagres ou rumo. Seus olhos siberianos cruzaram com os meus tropicais e os prenderam por um breve momento. Vamos?, ele disse. Obrigado, eu disse. No tempo entre essas duas falas algo que me escapa se passou. Tive a impressão de estar de volta quando disse obrigado. Só uma impressão. Não havia nada nada nada de que eu lembrasse ou que o indicasse. Como se voltasse de uma distração. Depois desse momento, algo mudou em mim. Não tenho mais medo do destino ou do futuro, não sinto mais a angústia que irmana os homens. Nada de ruim acontece realmente com bilhões e bilhões de pessoas, nada que piore verdadeiramente suas vidas ou as faça sofrer mais do que estão habituadas a suportar, mas elas não sabem que é assim que vai ser. A diferença entre mim e elas, que me torna um pouco humano, é que eu sei que nada de ruim vai me acontecer. Desde aquele dia.

        Naquela esquina, às cinco horas da tarde do centro da cidade de São Paulo, o homem sorriu para mim discretamente e levantou a mão com a flor. Um táxi parou, como se produzido por aquele gesto. Antes de entrar no táxi, despediu-se com um aceno de cabeça e, num exagero de mágico, ultima graça antes de deixar o picadeiro, jogou para o ar sua flor, que se transformou em pássaro e desapareceu no céu, em gracioso voo.

             Ivan Ângelo. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: Ática, 1994.

Fonte: Língua Portuguesa. Viva Português. 9° ano. Editora Ática. Elizabeth Campos. Paula Marques Cardoso. Silvia Letícia de Andrade. 2ª edição. 2011. P. 94-8.

Entendendo o conto:

01 – Escreva no caderno que perguntas você se fez durante a leitura do texto.

      Resposta pessoal do aluno.

02 – Sente-se com dois ou três colegas e discutam as resposta possíveis às questões que cada um levantou durante a leitura.

      Resposta pessoal do aluno.

03 – O conto “Talismã” foi escrito em primeira pessoa. A forma como o narrador está inserido na cena pode ser representada por apenas uma das ideias a seguir:

a)   Uma pessoa contando para a outra o que conversou com um amigo.

b)   Uma pessoa comentando com outra o próprio comportamento.

c)   Uma pessoa contando detalhes do comportamento de outra.

d)   Uma pessoa descrevendo todos os movimentos e sensações de outra.

04 – É pelo olhar do narrador que testemunhamos as cenas. No caderno, façam uma síntese de cada parágrafo do conto. Destaquem com suas palavras os principais elementos dessas cenas, reconstruindo o percurso narrativo. Se necessário, deem suas impressões sobre esses elementos:

      Resposta pessoal do aluno. Sugestões:

·        Parágrafo 1 = O narrador resolveu seguir um homem porque ele carregava um cravo com cuidado e vestia-se com roupas antigas.

·        Parágrafo 2 = O homem, indiferente às pessoas que passavam por ele, levava a flor protegendo-a, como se ela fosse uma vela.

·        Parágrafo 3 = O narrador comenta que o modo delicado de levar uma flor tão viçosa como um cravo lhe causou admiração.

·        Parágrafo 4 = O narrador sente-se envolver pelos movimentos aparentemente calculados do homem e isso o surpreende.

·        Parágrafo 5 = O narrador conta as hipóteses que levantou para tentar tornar o homem mais comum e justificar seu gesto solene com a flor.

·        Parágrafo 6 = O narrador suspeita que o homem é capaz de fazer com que as coisas aconteçam de acordo com o seu desejo.

·        Parágrafo 7 = O narrador nota de modo mais claro a sequência de eventos inesperados e favoráveis ocorridos com a passagem do homem.

·        Parágrafo 8 = O narrador trava um rápido, mas profundo contato com o homem. Isso o transforma e lhe dá a certeza de que nada de ruim vai lhe acontecer.

·        Parágrafo 9 = O homem sorri para o narrador, lança para o ar a flor, que se transforma em um pássaro.

05 – Em que parágrafo o narrador passa a observar a influência do homem sobre os acontecimentos à sua volta?

      No sexto parágrafo.

06 – No caderno, relacionem todas as alterações ocorridas por influência da passagem do homem que carregava a flor.

      Ele apressou o sinal dos pedestres; em uma confeitaria, uma balconista apareceu assim que ele escolheu o doce; as pessoas davam-lhe passagem de maneira gentil; rostos preocupados desanuviavam-se a sua passagem; pessoas encheram a cuia de uma mendiga com notas altas e objetos de valor; um ônibus travou no momento em que passaria por cima de um rapazinho que atropelara; a buzina de um motorista irritado com o ônibus emudeceu; o rapazinho atropelado levantou-se, refeito; após cruzar os olhos com os olhos do homem, o narrador percebeu uma profunda transformação em seu ser.

07 – Para o narrador, os eventos que testemunhou são extraordinários porque rompem a ordem previsível dos fatos.

a)   Diante das mesmas situações narradas, o que se poderia esperar que acontecesse?

As dificuldades naturais enfrentadas pela maioria das pessoa, como muito tempo de espera, falta de gentileza, comportamentos egoístas, mesquinhos ou mesmo a morte do rapaz atropelado, caso o ônibus passasse por cima dele.

b)   Que comportamentos extraordinários, surpreendentes, portanto, são observados pelo narrador?

O narrador observa a bondade, a gentileza, a simpatia e a solução positiva de um evento que poderia ser transformado em tragédia.

c)   Baseando-se nas respostas dadas aos itens anteriores, concluam: Os eventos observados pelo narrador são mágicos, ou seja, só poderiam ocorrer por meio de uma interferência sobrenatural?

Não são mágicos esses eventos; ao contrário, eles são realmente possíveis, no entanto, não são comuns, daí a admiração do narrador por eles.

d)   Na opinião de vocês, o que faz o narrador acreditar ser aquele homem com um flor o responsável por todos os eventos a sua volta?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: O narrador impressionado com o jeito de ser do homem, passa a enxergar a bondade das pessoas, gestos que talvez ele nunca tivesse notado.

08 – O narrador percebe uma transformação depois que seus olhos cruzaram com os do homem. Que transformação é essa?

      O narrador deixa de ter medo do destino ou do futuro por ter ganhado a certeza de que nada de ruim poderia acontecer a ele.

09 – Segundo a lógica do trecho abaixo, o que seria mais humano?

        “A diferença entre mim e elas, que me torna um pouco humano, é que eu sei que nada de ruim vai me acontecer. Desde aquele dia.”

      O medo, a angústia diária por causa das incertezas da vida.

10 – De acordo com o texto, o que você leu sobre talismãs. Então, responda:

a)   Que poderes uma pessoa que acredita em um talismã imagina que esse objeto tem?

O poder de dar sorte, de levar a fazer as escolhas certas, de evitar que algum mal lhe aconteça.

b)   No texto, a que elemento é atribuído o poder de talismã? Justifique sua resposta.

No texto, à flor foi atribuído o poder de talismã; primeiro porque ela é levada com imenso cuidado, com grande solenidade, depois, porque um evento mágico é atribuído a ela, sua transformação em um pássaro.

c)   O narrador conta que se transformou após cruzar o olhar com o do homem da flor. Na sua opinião, a confiança depositada em um objeto ou em um acontecimento pode realmente promover uma mudança na forma de enxergar a realidade?

Resposta pessoal do aluno.

d)   A que deve ser atribuída essa mudança suave, mas tão significativa na vida do narrador?

Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Pode ser atribuída ao elemento mágico (a flor) e ao homem pela confiança que o narrador passou a ter nas circunstâncias e em si mesmo após ter cruzado seus olhos com os dele.