quinta-feira, 6 de agosto de 2020

TEXTO: OS ESPELHOS DE PHANUEL - HARDY GUEDES - COM GABARITO

        Texto: Os espelhos de Phanuel

                    Hardy Guedes

        Conheci um dia, vivendo na mais profunda miséria, o melhor fabricante de espelhos que já houve em todo o mundo.

        Chamava-se Phanuel e era perfeito em seu ofício; um artesão inigualável.

        Dava gosto vê-lo em sua oficina. Os seus olhos experientes, especialistas, não permitiam qualquer imperfeição, nem riscos, nem manchas. Por isso, emprestava à escolha do cristal uma atenção redobrada.

        O mesmo se dava como aço, em cujo polimento gastava horas e horas de paciência e dedicação.

        É desnecessário dizer que o resultado era simplesmente fantástico.

        As imagens refletidas nos espelhos de Phanuel não deixavam escapar os detalhes mais sutis do original, além de não apresentarem quaisquer distorções.

        Mas, apesar de toda a perfeição e cuidado, Phanuel mal conseguia ganhar o suficiente para a sua sobrevivência. As encomendas que recebia eram poucas; pouquíssimas por sinal.

        Nessa ocasião, eu trabalhava como mercador e, por onde passava, procurava apregoar a excelência dos seus espelhos, na esperança de lhe conseguir algumas encomendas a mais.

        A minha ajuda pouco adiantava. Eu não sabia o quê, nem por quê, mas havia algo nos espelhos que, mesmo com toda a arte empregada no seu fabrico, não lhes conferia o sucesso merecido.

        Certa vez, fiz uma longa viagem a um porto distante. Aguardava a chegada de um navio com uma remessa de tecidos e tapetes orientais. Pra meu azar, houve um atraso inesperado e considerável devido ao mau tempo. Uma tempestade obrigou o capitão a desviar a nau de seu destino original.

        Além desse contratempo, fui acometido de uma febre estranha que me deixou acamado por um longo período.

        Assim, fiquei um bom tempo sem ver o meu amigo Phanuel.

        Logo que pude, voltei ao meu ofício de mercador e, ao passar pela cidade onde morava o artesão, qual não foi minha surpresa: a velha oficina não existia mais. Em seu lugar, havia uma outra, moderna, numa atividade febril.

        -- Ora, viva! – exclamei. – Até que enfim o seu talento foi reconhecido!

        -- Bons olhos o vejam, mercador! Andava preocupado, sem notícias suas.

        -- Tive alguns problemas, mas já estão sanados. E você? Conseguiu, finalmente, o sucesso com os seus espelhos?

        -- Não da forma como você está pensando.

        -- Como assim?

        -- Não fabrico mais os espelhos de antigamente.

        -- Não!?

        -- É uma longa história. Vamos combinar o seguinte: hoje à noite, você vai à minha casa. Faço questão de recebe-lo! Durante o jantar, eu lhe contarei tudo o que aconteceu comigo, desde a última vez que nos vimos.

        A minha curiosidade não deu sossego e aumentou à medida que foi se aproximando a hora de me dirigir à casa de Phanuel.

        Lá chegando, fiquei admirado. Era um verdadeiro palacete: jardins, fontes, aves ornamentais... internamente, decorada com bom gosto e requinte.

        Um empregado conduziu-me a uma das salas, onde o artesão me aguardava.

        -- Bem-vindo seja, mercador! Sinta-se, por favor, em sua própria casa!

        -- Obrigado, meu bom amigo! Quero dizer que estou imensamente feliz com a sua prosperidade. Mas, não estou conseguindo controlar a minha ansiedade em saber como você, de um pobre artesão, transformou-se em alguém tão rico.

        Phanuel ordenou que servissem o jantar preparado em minha homenagem; iguarias como jamais havia provado em toda a minha vida.

        Enquanto nos alimentávamos, ele relatou-me a transformação de sua vida.

        -- Após a sua última visita, as encomendas foram rareando, rareando, a ponto de passar dias e dias seguidos sem ter o que fazer. Isso foi me dando um desespero tamanho, em função de não conseguir mais com o meu trabalho o mínimo necessário ao meu sustento. Ao terminar a última de minhas provisões, resolvi dar cabo de minha vida. Pensei, naquela ocasião, que esta saída seria mais nobre do que misturar-me aos indigentes e mendigos da cidade.

        -- Nunca poderia imaginar que a sua situação fosse chegar a esse ponto!

        -- Esperei o dia nascer, fiz uma oração pedindo perdão a Deus pelo ato que iria cometer e caminhei até a ponte na estrada da cidade. O rio que passa debaixo dela é profundo o suficiente para que alguém como eu, que nunca soube nadar, fosse levado pela corrente e desaparecesse sem deixar rastro. Esse era o fim que planejara naqueles dias de aflição. Ao chegar à ponte, porém, notei que havia um ancião, já sentado na amurada, com uma pedra amarrada à mesma corda que estava presa ao seu pescoço. Não sei o que me deu naquela hora. Corri em sua direção, agarrei-o e impedi que ele se suicidasse. Acho que o meu instinto de sobrevivência e o meu amor ao próximo foram mais forte.

        -- “Por que não me deixas morrer, se é tudo que quero?” – perguntou-me.

        Eu lhe contei, então, o meu drama pessoal. Falei de minhas dificuldades e que estava ali, com as mesmas intenções de procurar a morte, até que o vi. Disse-lhe mais: que naquela hora, salvando a vida de um entranho, senti que ainda tinha muito a realizar e, humildemente, agradeci a sua presença naquele lugar. O velhinho, Amazarak era o seu nome, olhou-me comovido e disse: “Não há dúvida que o destino que nos aproximou, de forma tão misteriosa, deve ter lá as suas razões. Eu, também, acabo de descobrir uma nova motivação para continuar vivendo. Esta motivação é ensiná-lo a fabricar espelhos”.

        -- Fabricar espelhos!? Como, se não há ninguém no mundo capaz de superá-lo nesta arte?

        -- Eu acho que, algum dia, eu mesmo cheguei a acreditar nisso. Pura vaidade! Amazarak sabia bem o que estava dizendo. Ensinou-me, então, o principal segredo da fabricação de espelhos. Graças a ele, mudei a minha vida da água para o vinho!

        -- Que segredo é esse, Phanuel? Conte-me logo, porque se eu não tivesse lhe conhecido antes, presenciado a sua transformação; se não ouvisse esta história de sua própria voz, eu jamais acreditaria! Eu que vi a sua dedicação, o amor à arte de fabricar espelhos perfeitos, não consigo crer que alguém tivesse algo a lhe ensinar sobre este ofício!

        -- Na verdade, meu caro amigo, o segredo é bem simples. Eu, realmente, fazia espelhos perfeitos. Por isso não conseguia o sucesso almejado. Isso era o que me faltava aprender.

        -- Não estou entendendo!

        -- É que a maioria das pessoas não deseja, de fato, um espelho perfeito. Porque num espelho assim, elas se veem como realmente são e não como gostariam de se ver. Com os ensinamentos de Amazarak, aprendi a fazer espelhos adequados à vaidade humana. Este é o segredo: quem se olha nos espelhos que faço hoje, vê, apenas, o que deseja ver.

        Saí da casa de Phanuel meditando sobre sua fantástica história, com a certeza de haver aprendido uma grande lição de vida.

        Infelizmente, o segredo de Amazarak se aplica, também, a todo relacionamento humano. A verdade, a sinceridade, a franqueza, nem sempre agradam.

        Por isso não paravam de crescer as encomendas dos novos espelhos de Phanuel!

                                                 Hardy Guedes.

                                Fonte: Livro – Encontro e Reencontro em Língua Portuguesa – 8ª Série – Marilda Prates – Ed. Moderna, 2005 – p. 78-81.

Entendendo o texto:

01 – O que significa ser um artesão inigualável? Justifique sua resposta com um exemplo.

      Ser um indivíduo que exerce, por conta própria, uma arte, um ofício manual e de valor insuperável devido à sua qualidade profissional.

02 – “Os seus olhos experientes, especialistas, não permitiam qualquer imperfeição, nem riscos, nem manchas. Por isso, emprestava à escolha do cristal uma atenção redobrada”.

a)   Identifique o sujeito da primeira e da segunda frases.

Os seus olhos experientes, especialistas / ele (Phanuel).

b)   Se a mesma personagem executou as ações das duas frases, por que cada frase apresenta um sujeito diferente?

Porque a substituição do todo pela parte foi usada para evitar a repetição do sujeito e para aumentar a relação entre o olhar da personagem e o seu ofício.

03 – Reescreva as frases a seguir sem modificar o significado original.

a)   “Não da forma como você está pensando”.

Não do jeito, da maneira como você está pensando. / Não vendendo os espelhos perfeitos de antes.

b)   Resolvi dar cabo de minha vida.

Resolvi me suicidar.

c)   Não sei o que me deu naquela hora.

Não sei o que senti / aconteceu comigo naquela hora.

04 – Reescreva as frases a seguir substituindo os termos em destaque por expressões ou frases que tornem os acontecimentos explícitos.

a)   “Isso foi me dando um desespero tamanho”.

O fracasso de venda dos espelhos foi...

b)   “Pensei, naquela ocasião, que esta saída seria mais nobre...”.

Pensei, naquela ocasião, que me suicidar seria a saída / a solução mais nobre.

05 – Você sabe o que faz um mercador? Consulte o dicionário.

      Um mercador é um comerciante.

06 – Phanuel tinha um amigo. Verdadeiro! Justifique a afirmação.

      Mesmo depois de longa ausência, não houve esquecimento no reencontro, mas o fortalecimento da amizade já existente.

07 – Se Phanuel já conhecia todas as técnicas para fabricar espelhos perfeitos, o que Amazarak ensinou para ele?

      Amazarak ensinou Phanuel a fabricar espelhos que refletissem a imagem das pessoas da maneira que elas queriam ser vistas.

08 – O amigo de Phanuel tira suas próprias conclusões a partir da lição aprendida por Phanuel.

a)   Identifique essa conclusão.

“A verdade, a sinceridade, a fraqueza nem sempre agradam”.

b)   O que você pensa sobre o assunto?

Resposta pessoal do aluno.

09 – Por que a maioria das pessoas não deseja um espelho perfeito? Justifique de acordo com o texto.

      Porque as pessoas preferem se ver no espelho como desejariam ser. Estão insatisfeitas consigo mesmas.

10 – Após a leitura do texto, que conclusões se pode tirar para o nosso cotidiano? Fale indicando o seu ponto de vista.

      Resposta pessoal do aluno.

   

 


terça-feira, 4 de agosto de 2020

MÚSICA(ATIVIDADES): O HOMEM VELHO - CAETANO VELOSO - COM GABARITO

Música(Atividades): O Homem Velho

              Caetano Veloso

O homem velho deixa a vida e morte para trás

Cabeça a prumo, segue rumo e nunca, nunca mais

O grande espelho que é o mundo ousaria refletir os seus sinais

O homem velho é o rei dos animais

 

A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol

As linhas do destino nas mãos a mão apagou

Ele já tem a alma saturada de poesia, soul e rock'n'roll

As coisas migram e ele serve de farol

 

A carne, a arte arde, a tarde cai

No abismo das esquinas

A brisa leve traz o olor fulgaz

Do sexo das meninas

 

Luz fria, seus cabelos têm tristeza de néon

Belezas, dores e alegrias passam sem um som

Eu vejo o homem velho rindo numa curva do caminho de Hebron

E ao seu olhar tudo que é cor muda de tom

 

Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval

Espalham-no além da ilusão do seu ser pessoal

Mas ele dói e brilha único, indivíduo, maravilha sem igual

Já tem coragem de saber que é imortal.

                                    Composição: Caetano Veloso.

Entendendo a canção:

01 – A letra da canção oferece uma reflexão acerca da velhice. Em relação ao tema do envelhecimento, o principal objetivo do poeta é:

a)   Expor seus desafios para a juventude.

b)   Narrar sua história através dos tempos.

c)   Destacar seus efeitos sobre a sociedade.

d)   Descrever sua chegada na vida das pessoas.

02 – A solidão agora é sólida, uma pedra ao sol (v.5) / Os filhos, filmes, ditos, livros como um vendaval (v.17). Os recursos expressivos presentes em cada um dos versos acima são, respectivamente:

a)   Aliteração – assíndeto.

b)   Polissíndeto – antítese.

c)   Hipérbole – eufemismo.

d)   Personificação – metonímia.

03 – O homem velho é o rei dos animais (v.4) / As coisas migram e ele serve de farol (v.8). As metáforas sublinhadas nos dois versos acima veiculam, respectivamente, as ideias de:

a)   Arrogância – magnitude.

b)   Sabedoria – experiência.

c)   Sagacidade – inspiração.

d)   Imponência – orientação.

04 – É possível fazer uma reflexão com a leitura da canção? Você concorda com as afirmações feitas pelo eu lírico?

      Resposta pessoal do aluno.

05 – Identifique a opção que completa corretamente o enunciado a seguir. Pode-se afirmar que o texto cumpre seu objetivo, pois:

a)   Simplesmente passa informações.

b)   Provoca emoções e reflexões.

c)   Serve de diversão.

d)   Modifica o comportamento.

06 – O eu lírico aborda o ema do envelhecimento de forma poética, apresentando argumentos que levam a inferir que seu objetivo é:

a)   Esclarecer que a velhice é inevitável.

b)   Contar fatos sobre a arte de envelhecer.

c)   Defender a ideia de que a velhice é desagradável.

d)   Mostrar às pessoas que é possível aceitar, sem angústia, o envelhecimento.


POEMA: NÃO ME DEIXES! GONÇALVES DIAS - COM GABARITO

Poema: NÃO ME DEIXES!  

Gonçalves Dias

Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!”

"Comigo fica ou leva-me contigo
"Dos mares à amplidão;
"Límpido ou turvo, te amarei constante;
"Mas não me deixes, não!"

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte:
"Ai, não me deixes, não!"

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor, e sempre embalde:
"Ai, não me deixes, não!"

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
"Não me deixaste, não!"

DIAS, Gonçalves. Não me deixes! In: MILLIET, Sérgio (Seleção e notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 92-93.

Entendendo o poema:

01 – O lamento da flor representa fielmente o sentimento romântico
de:
     a) Evasão no tempo.

     b) Amor incondicional ao outro;

     c) Supervalorização da natureza;

     d) Exaltação do sonho, da fantasia;

     e) Desejo de morte pelo amor não correspondido.

02 – Observa-se a inversão, como recurso estilístico, no verso:

     a) “A flor dizia em vão”

     b) “Mas não me deixes, não.”

     c) “E a corrente passava”

     d) “Dizia sempre a flor, e sempre embalde”

     e) “Leva-a do seu torrão”.

03 – Leia os versos a seguir, início do poema “Não me deixes!”, de Gonçalves Dias:

“Debruçada nas águas dum regato
A flor dizia em vão
À corrente, onde bela se mirava:
"Ai, não me deixes, não!”

"Comigo fica ou leva-me contigo
"Dos mares à amplidão;
"Límpido ou turvo, te amarei constante;
"Mas não me deixes, não!"

Assinale a alternativa da qual consta a figura de linguagem predominante nos versos:

a)   Metonímia.

b)   Sinestesia.

c)   Metáfora.

d)   Catacrese.

e)   Prosopopeia.

04 – O título do poema motiva a leitura?

      Sim, a ideia de ser abandonado aguça a curiosidade do leitor.

05 – As repetições utilizadas favorecem a construção do poema?

      Sim, a repetição chama a atenção do leitor para a importância e significado que essa palavra tem na construção e interpretação do poema.

06 – Nesse poema a flor está personificada com sentimentos típicos de seres humanos. Como ela se sentia?

      Sentia-se bela; mira-se no espelho d’água; não quer ficar sozinha; fala; promete amor constante ao regato e implora a sua companhia; a flor praticamente morre de amor.

 

 

 


CRÔNICA: A ALIANÇA - LUÍS FERNANDO VERÍSSIMO - COM GABARITO

Crônica: A aliança

              Luís Fernando Veríssimo

        Esta é uma história exemplar, só não está muito claro qual é o exemplo. De qualquer jeito, mantenha-a longe das crianças. Também não tem nada a ver com a crise brasileira, o apartheid, a situação na América Central ou no Oriente Médio ou a grande aventura do homem sobre a Terra. Situa-se no terreno mais baixo das pequenas aflições da classe média. Enfim. Aconteceu com um amigo meu. Fictício, claro.

        Ele estava voltando para casa como fazia, com fidelidade rotineira, todos os dias à mesma hora. Um homem dos seus 40 anos, naquela idade em que já sabe que nunca será o dono de um cassino em Samarkand, com diamantes nos dentes, mas ainda pode esperar algumas surpresas da vida, como ganhar na loto ou furar-lhe um pneu. Furou-lhe um pneu. Com dificuldade ele encostou o carro no meio-fio e preparou-se para a batalha contra o macaco, não um dos grandes macacos que o desafiavam no jângal dos seus sonhos de infância, mas o macaco do seu carro tamanho médio, que provavelmente não funcionaria, resignação e reticências… Conseguiu fazer o macaco funcionar, ergueu o carro, trocou o pneu e já estava fechando o porta-malas quando a sua aliança escorregou pelo dedo sujo de óleo e caiu no chão. Ele deu um passo para pegar a aliança do asfalto, mas sem querer a chutou. A aliança bateu na roda de um carro que passava e voou para um bueiro. Onde desapareceu diante dos seus olhos, nos quais ele custou a acreditar. Limpou as mãos o melhor que pôde, entrou no carro e seguiu para casa. Começou a pensar no que diria para a mulher. Imaginou a cena. Ele entrando em casa e respondendo às perguntas da mulher antes de ela fazê-las.

        — Você não sabe o que me aconteceu!

        — O quê?

        — Uma coisa incrível.

        — O quê?

        — Contando ninguém acredita.

        — Conta!

        — Você não nota nada de diferente em mim? Não está faltando nada?

        — Não.

        — Olhe.

        E ele mostraria o dedo da aliança, sem a aliança.

        — O que aconteceu?

        E ele contaria. Tudo, exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

        — Que coisa – diria a mulher, calmamente.

        — Não é difícil de acreditar?

        — Não. É perfeitamente possível.

        — Pois é. Eu…

        — SEU CRETINO!

        — Meu bem…

        — Está me achando com cara de boba? De palhaça? Eu sei o que aconteceu com essa aliança. Você tirou do dedo para namorar. É ou não é? Para fazer um programa. Chega em casa a esta hora e ainda tem a cara-de-pau de inventar uma história em que só um imbecil acreditaria.

        — Mas, meu bem…

        — Eu sei onde está essa aliança. Perdida no tapete felpudo de algum motel. Dentro do ralo de alguma banheira redonda. Seu sem-vergonha!

        E ela sairia de casa, com as crianças, sem querer ouvir explicações. Ele chegou em casa sem dizer nada. Por que o atraso? Muito trânsito. Por que essa cara? Nada, nada. E, finalmente:

        — Que fim levou a sua aliança? E ele disse:

        — Tirei para namorar. Para fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamento agora, eu compreenderei.

        Ela fez cara de choro. Depois correu para o quarto e bateu com a porta. Dez minutos depois reapareceu. Disse que aquilo significava uma crise no casamento deles, mas que eles, com bom-senso, a venceriam.

        — O mais importante é que você não mentiu pra mim.

Luís Fernando Veríssimo

Entendendo a crônica:

01 – Do que trata o texto?

      Retrata fatos do cotidiano, que são muitas vezes, banais ou comuns.

02 – O tema é cotidiano?

      Sim, discutindo o cotidiano do casamento, levantando fatos sobre fidelidade x traição e tomando a aliança como um símbolo de compromisso e respeito mútuo.

03 – Qual o tipo de linguagem?

      Linguagem informal (coloquial).

04 – É um texto longo ou curto?

      O texto é curto.

05 – A trama se desenvolve em torno de um único conflito? Explique.

      Sim. A perda da aliança que caiu no bueiro, enquanto ele trocava o pneu.

06 – Existem muitos personagens? Quem são?

      Não. É apenas o marido e a mulher.

07 – Analise o foco narrativo, ou seja, o autor escolhe o ponto de vista que vai adotar:  escreve na primeira pessoa (eu vi, eu fiz, eu senti) e se transforma em parte da narrativa – é o autor-personagem; ou fica de fora e escreve na terceira pessoa (ele fez, eles sentiram) – é o autor – observador. O narrador narra em primeira ou terceira pessoa?

      A crônica é narrativa e tem por base uma história contada em terceira pessoa do singular.

08 – Qual é o tom da crônica: bem-humorado, poético, irônico, reflexivo ou sério?

      O tom é bem-humorado, pois o marido conhecendo a mulher, sabia que ela não acreditaria na verdade, então resolveu mentir sobre sua infidelidade, na qual ela acreditou.

09 – Determine a classe gramatical da palavra “muito” nos trechos a seguir, informando também a que classe gramatical pertence a palavra que está sendo modificada por aquela primeira palavra (“muito”):

a)   “... só não está muito claro qual é o exemplo”.

“Muito” é advérbio e está modificando o adjetivo “claro”.

b)   “... mas o macaco do seu carro tamanho médio, que muito provavelmente não funcionaria...”

“Muito” é advérbio e está modificando o advérbio “provavelmente”.

c)   “... diante dos seus olhos, nos quais ele custou muito a acreditar”.

“Muito” é advérbio e está modificando a forma verbal “custou”.

10 – Leia a crônica com bastante atenção e copie as palavras-chave do texto.

      Aliança, mentira, casamento, homem, mulher, relacionamento, crise, traição, verdade, bom-senso, fidelidade, rotina, namorar, meia-idade.

 

 


CONTO: AS MARGENS DA ALEGRIA - JOÃO GUIMARÃES ROSA - COM GABARITO

Conto: As margens da alegria

João Guimarães Rosa

        Esta é a estória.

        Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade. Era uma viagem inventada no feliz; para ele, produzia-se em caso de sonho. Saíam ainda com o escuro, o ar fino de cheiros desconhecidos. A mãe e o pai vinham trazê-lo ao aeroporto. A tia e o tio tomavam conta dele, justínhamente. Sorria-se, saudava-se, todos se ouviam e falavam. O avião era da companhia, especial, de quatro lugares. Respondiam-lhe a todas as perguntas, até o piloto conversou com ele. O voo ia ser pouco mais de duas horas. O menino fremia no acorçoo, alegre de se rir para si, confortavelzinho, com um jeito de folha a cair. A vida podia às vezes ralar numa verdade extraordinária. Mesmo o afivelarem-lhe o cinto de segurança virava forte afago, de proteção, e logo novo senso de esperança: ao não-sabido, ao mais. Assim um crescer e desconter-se — certo como o ato de respirar — o de fugir para o espaço em branco. O menino. E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia, benfazeja, em movimentos concordantes: as satisfações antes da consciência das necessidades. Davam-lhe balas, chicles, à escolha. Solicito de bem-humorado, o tio ensinava-lhe como esta reclinável o assento bastando a gente premer manivela. Seu lugar era o da janelinha, para o amável mundo.

        Entregavam-lhe revistas, de folhear, quantas quisesse, até um mapa, nele mostravam os pontos em que ora e ora se estava, por cima de onde. O menino deixava-as, fartamente, sobre os joelhos, e espiava: as nuvens de amontoada amabilidade, o azul de só ar, aquela claridade à larga, o chão plano em visão cartográfica, repartido de roças e campos, o verde que se ia a amarelos e vermelhos e a pardo e a verde; e, além, baixa, a montanha. Se homens, meninos, cavalos e bois — assim insetos? Voavam supremamente. O menino, agora, vivia; sua alegria despedindo todos os raios. Sentava-se, inteiro, dentro do macio rumor do avião: o bom brinquedo trabalhoso.

        Ainda nem notara que, de fato, teria vontade de comer, quando a tia já lhe oferecia sanduíches. E prometia-lhe o tio as muitas coisas que ia brincar e ver, e fazer e passear, tanto que chegassem. O menino tinha tudo de uma vez, e nada, ante a mente. A luz e a longa-longa-longa nuvem.

        Chegavam.

II

        Enquanto mal vacilava a manhã.

        A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão: a mágica monotonia, os diluídos ares. O campo de pouso ficava a curta distância da casa — de madeira, sobre estações, quase penetrando na mata. O menino via, vislumbrava.

        Respirava muito. Ele queria poder ver ainda mais vívido — as novas tantas coisas — o que para os seus olhos se pronunciava. A morada era pequena, passava-se logo à cozinha, e ao que não era bem quintal, antes breve clareira, das árvores que não podem entrar dentro de casa. Altas, cipós e orquideazinhas amarelas delas se suspendiam. Dali, podiam sair índios, a onça, leão, lobos, caçadores?

        Só sons. Um — e outros pássaros — com cantos compridos. Isso foi o que abriu seu coração. Aqueles passarinhos bebiam cachaça?

        Senhor! Quando avistou o peru, no centro do terreiro, entre a casa e as árvores da mata. O peru, imperial, dava-lhe as costas, para receber sua admiração. Estalara a cauda, e se entufou, fazendo roda: o rapar das asas no chão brusco, rijo se proclamara.

        Grugulejou, sacudindo o abotoado grosso de bagas rubras; e a cabeça possuía laivos de um azul-claro, raro, de céu e sanhaços; e ele, completo, torneado, redondoso, todo em esferas e planos, com reflexos de verdes metais em azul-e-preto — o peru para sempre. Belo, belo! Tinha qualquer coisa de calor, poder e flor, um transbordamento. Sua ríspida grandeza tonltriante. Sua colorida empáfia. Satisfazia os olhos, era de se tanger trombeta. Colérico, encachiado, andando, gruzlou outro gluglo. O menino riu, com todo o coração. Mas só bis-viu. Já o chamavam, para o passeio.

III

        Iam de jipe, iam aonde ia ser um sítio do Ipê. O menino repetia-se em íntimo o nome de cada coisa.

        A poeira, alvissareira. A malva-do-campo, os lentiscos. O velame-branco, de pelúcia. A cobra-verde, atravessando a estrada. A arnica: em candelabros pálidos. A aparição angélica dos papagaios.

        As pitangas e seu pingar. O veado campeiro: o rabo branco. As flores em pompa arroxeadas da canela-de-ema. O que o tio falava: que ali havia “imundície de perdizes”. A tropa de seriemas, além, fugindo, em fila, índio-a-índio. O par de garças. Essa paisagem de muita largura, que o grande sol alagava.

        O buriti, à beira do corguínho, onde, por um momento, atolaram. Todas as coisas, surgidas do opaco. Sustentava-se delas sua incessante alegria, sob espécie sonhosa, bebida, em novos aumentos de amor. E em sua memória ficavam, no perfeito puro, castelos já armados. Tudo, para a seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. Ele estava nos ares. Pensava no peru, quando voltavam. Só um pouco, para não gastar fora de hora o quente daquela lembrança, do mais importante, que estava guardado para ele, no terreirínho das árvores bravas. Só pudera tê-lo um instante, ligeiro, grande, demoroso. Haveria um, assim, em cada casa, e de pessoa?

        Tinham fome, servido o almoço, tomava-se cerveja. O tio, a tia, os engenheiros. Da sala, não se escutava o galhardo ralhar dele, seu grugulejo? Esta grande cidade ia ser a mais levantada no mundo.

        Ele abria leque, impante, explodido, se eunava… Mal comeu dos doces, a marmelada, da terra, que se cortava bonita, o perfume em açúcar e carne de flor. Saiu, sôfrego de o rever.

        Não viu: imediatamente. A mata é que era tão feia de altura. E — onde? Só umas penas, restos, no chão. — “Uê se matou. Amanhã não é o dia-de-anos do doutor?”

        Tudo perdia a eternidade e a certeza; num lufo, num átimo, da gente as mais belas coisas se roubavam. Como podiam? Por que tão de repente? Soubesse que ia acontecer assim, ao menos teria olhado mais o peru aquele. O peru-seu desaparecer no espaço. Só no grão nulo de um minuto, o menino recebia em si um miligrama de morte.

        Já o buscavam: — “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago.

IV

        Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento.

        Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medeia. Abaixava a cabecinha.

        Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto — transitavam no extenso as compressoras, caçambas, cilindros, o carneiro socando com seus dentes de pilões, as betumadoras.

        E como haviam cortado lá o mato? — a tia perguntou.

        Mostraram-lhe a derrubadora, que havia também: com à frente uma lâmina espessa, limpa-trilhos, à espécie de machado. Queria ver? Indicou-se uma árvore: simples, sem nem notável aspecto, à orla da área matagal. O homenzinho tratorista tinha um toco de cigarro na boca.

        A coisa pôs-se em movimento.

        Reta, até que devagar. A árvore, de poucos galhos no alto, fresca, de casca clara…, e foi só o chofre: uh… sobre o instante ela para lá se caiu, toda, toda.

        Trapreara tão bela. Sem nem se poder apanhar com os olhos o acertamento — o inaudito choque — o pulso da pancada. O menino fez ascas.

        Olhou o céu — atônito de azul. Ele tremia. A árvore, que morrera tanto. A limpa esguiez do tronco e o marulho imediato e final de seus ramos — da parte de nada.

        Guardou dentro da pedra.

V

        De volta, não queria sair mais ao terreirinho, lá era uma saudade abandonada, um incerto remorso.

        Nem ele sabia bem. Seu pensamentozinho estava ainda na fase hieroglífica. Mas foi, depois do jantar. E — a nem espetaculosa surpresa — viu-o, suave inesperado: o peru, ali estava! Oh, não. Não era o mesmo. Menor, menos muito. Tinha o coral, a arrecauda, a escova, o grugulhar grufo, mas faltava em sua penosa elegância o recacho, o englobo, a beleza esticada do primeiro. Sua chegada e presença, em todo o caso, um pouco consolavam.

        Tudo se amaciava na tristeza. Até o dia; isto era já o vir da noite.

        Porém, o subir da noitinha é sempre e sofrido assim, em toda a parte. O silêncio saía de seus guardados. O menino, timorato, aquietava-se com o próprio quebranto: alguma força, nele, trabalhava por arraigar raízes, aumentar-lhe alma.

        Mas o peru se adiantava até a beira da mata. Ali adivinhara o quê? Mal dava para se ver, no escurecendo. E era a cabeça degolada do outro, atirada ao monturo. O menino se doía e se entusiasmava.

        Mas: não. Não por simpatia companheira e sentida o peru até ali viera, certo, atraído. Movia-o um ódio. Pegava de bicar, feroz, aquela outra cabeça. O menino não entendia. A mata, as mais negras árvores, eram um montão demais; o mundo.

        Trevava.

        Voava, porém, a luzinha verde, vindo mesmo da mata, o primeiro vagalume. Sim, o vagalume, sim, era lindo! — tão pequenino, no ar, um instante só, alto, distante, indo-se. Era, outra vez em quando, a alegria.

João Guimarães Rosa, no livro “Primeiras estórias”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

Entendendo o conto:

01 – O título “As margens da alegria” constitui uma chave de interpretação: se o leitor identifica quais são as margens da alegria, em relação ao protagonista menino, estabelece o eixo que sustenta e estrutura o conto.

        Pela leitura global do texto, pode-se dizer que, para o menino, as margens da alegria se definem pelos seguintes fatores:

a)   Encantamento com a luz e medo perante a escuridão.

b)   Deslumbramento com a beleza e dor frente à morte.

c)   Curiosidade da criança e descrença do homem.

d)   Construção da cidade e destruição das árvores.

02 – Esta é a estória.

        Ao escolher a frase acima para iniciar seu texto, o autor promove o seguinte efeito de sentido junto ao leitor.

a)   Ficcionalidade.

b)   Realidade.

c)   Diacronia.

d)   Ação.

03 – O conto, publicado em 1962, refere-se à construção de uma cidade cujo nome não é mencionado. Trechos da narrativa permitem supor que se trata de Brasília, fundada em 1960. O trecho do conto que torna mais provável essa suposição é:

a)   Ia um menino, com os tios, passar dias no lugar onde se construía a grande cidade.

b)   A grande cidade apenas começava a fazer-se, num semi-ermo, no chapadão.

c)   Esta grande cidade ia ser a mais levantada do mundo.

d)   “Vamos aonde a grande cidade vai ser, o lago...”.

04 – Os episódios que envolvem os dois perus são fundamentais para o menino e seu conhecimento de mundo.

        No que diz respeito à violência, esses episódios indicam a seguinte percepção do menino:

a)   Nem os homens nem os animais são violentos.

b)   Os homens são violentos sem motivo aparente.

c)   Tanto os homens quanto os animais são violentos.

d)   Os animais são violentos por motivo de sobrevivência.

05 – Guimarães Rosa é conhecido por seus neologismos, isto é, pelas palavras que criava. O trecho que contém um neologismo se encontra em:

a)   Era uma viagem inventada no feliz; para eles, produzia-se em caso de sonho.

b)   E as coisas vinham docemente de repente, seguindo harmonia prévia.

c)   Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza.

d)   O que o Tio falava: que ali havia “imundície de perdizes”.

06 – Quem é a personagem principal?

      A personagem é o Menino e, assim como ele, as outras personagens são apenas identificadas pelo grau de parentesco.

07 – Que tipo de narrador traz o conto?

      O conto é narrado em terceira pessoa.

08 – Em que tom o conto é narrado?

      Em um tom lírico reflexivo.

09 – Que fatos provocaram o desenrolar dos acontecimentos descritos no texto?

      A primeira viagem de um menino, a descoberta do mundo: a crueldade representada pela morte do peru e a beleza e a alegria representadas pelo vagalume.

10 – De que forma o autor se identifica profundamente com o protagonista?

      Como se ele espelhasse sua própria trajetória, sua infância, nessas delicadas passagens, em seus estados de alma, nos dolorosos conflitos, nas fascinantes descobertas.

11 – O clímax de tanta felicidade após a viagem se dá por qual motivo?

      Quando o menino encontra um peru majestoso.

12 – Por que durou pouco tempo a felicidade do menino por ter encontrado um peru?

      O menino fica sabendo que a ave havia sido morta para o aniversário do Tio.

13 – A luz do vagalume em meio a escuridão da floresta simboliza o quê?

      Simboliza a esperança que se deve ter após a queda do Paraíso, após o mergulho nas imperfeições da condição humana.