sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

CONTO: NUM PACATO VILAREJO - HEBE COIMBRA - COM QUESTÕES GABARITADAS


Num Pacato Vilarejo...

 Hebe Coimbra

Num pacato vilarejo
pelo qual passava um rio
vivia-se o dia-a-dia
na maior sensaboria.
Nenhum fato singular
nenhum feito notável
nada de espetacular.
Tudo, tudo, sempre igual
ou, senão, bem parecido.


Pra quebrar a insipidez
lá em quando, quando em vez
um evento diferente
reunia toda gente.
Nos casos de morte
ou nascimento
batizado, aniversário
ou casamento.            

 Amanhecia.
 E todos despertos, espertos
 ligados, de pé.
 E leite, manteiga, pão e café.
 E saíam.
E agiam.
 Almoçavam.
As obrigações todas em dia.
Anoitecia.
Jantavam.
Apagavam as luzes
desligando mais um dia...
Prolongar mais pra quê?
Tê-los compridos como um bassê?
E preenchê-los com o quê?

Os assuntos
batidos e rebatidos.
Escassos.
O palavreado disperso
esparso:
bom-dia chuva grossa
chuva pouca
anzol
vento frio
boa noite
papel ofício
tomate
peixe
estio...

A vida um dos outros
e a dos outros por cada um
mais que sabida.
De trás pra frente
de todos os lados.
Cada fato conhecido
de cor e salteado
do princípio até o fim.
Detalhes, minúcias
tintim por tintim...

O presente e o futuro
sem maiores atribulações.
Prontos. Determinados.
Nada a ser questionado.
Desde o ventre já se vinha
com o destino traçado.
O filho do barbeiro
barbeiro seria.
O filho de Astolfo
seria marido
da filha de Lia.   
                            
E assim lá se iam
na uniformidade os dias.
Sem grande alegria
nem plural melancolia.
Num ramerrão tão quão
esta rima em ia.
Não eram felizes.
Nem tampouco infelizes.
Eram somente
pessoas descontentes
porém convenientes
que moravam num vilarejo
pelo qual passava um rio
onde a vida sem surpresas
transcorria...

Mas, dizem
não se sabe se é lenda
se é fato
ou se de fato é lenda
apareceu...

Na madrugada.
Em silêncio.
Não se pode precisar a que horas.
Com exatidão suíça
não se pode dizer nada a respeito.
Porque recolhidos nos seus leitos
todos do vilarejo dormiam.
Exceto Manuel
o dono do armazém
que por essas casualidades
que de raro aconteciam
não se sentiu muito bem
teve uma dor de barriga
que o obriga a levantar-se.
E então olha pra fora
está escuro, é quase aurora
e vê...
Ou não vê?
Não acreditou no que viu?
Ou não viu?
Sonhava?
Ou estava acordado?
Não era muito importante.
Ou era?
 Viu?
 Ou não viu?

 Acostumado como estava
a ter sono corrido
e a viver sem novidade
Manuel ficou dividido
entre o cômodo e a originalidade.
Fez um esforço danado.
Queria manter os olhos abertos
mas tinha o sono pesado.
Tentava prestar atenção
 mas o sono usava trucagem.
Ah, não viu nada não.
Pura alucinação.
Miragem.
Buscou resistir.
Não conseguiu.
Voltou pra cama e dormiu.

E na manhã seguinte
por maior o seu empenho
sacudindo a cabeça
enrugando o sobrecenho
pra refrescar as ideias
afastar os pensamentos
lhe vinha a lembrança
daquele momento.
Do que viu na madrugada.
Ou será que não viu nada?
Mas todo esforço à toa.
Então foi trabalhar numa boa.
Bem... nem tão numa boa assim...
Foi meio que conjeturando
foi meio que duvidando...

Desse instante em diante
muita coisa aconteceu.
Graças a Manuel
que, desse modo, delirante
muitos erros cometeu.

Manuel abriu o armazém
e logo chegou Serafina.
Filha de Josefina
neta de Ambrosina
bisneta e etcétera
de outras inas.
Família de doceiras
de mulheres trabalhadeiras.
Famosas por suas tortas
saborosas.
Mais ou menos...
No vilarejo
ninguém fazia coisas estupendas
ou maravilhosas.
 — Pra fazer os meus doces
quero farinha, leite, ovos
manteiga, cravo e canela
e pra mexer as panelas
quero uma colher de pau,
foi Serafina falando.

Manuel meio que estouvando
pensando se viu ou não viu
ao invés de colher de pau
juntou aos ingredientes
meio quilo de bacalhau.
Serafina se despediu.
Pegou o embrulho e saiu.
Nem suspeitou de um engano.
No vilarejo
nada saía dos planos.

Algum tempo depois
fazendo caras e bocas
com pose de gente de bem
foi Dona Mercedes
adentrando no armazém.
Senhora fina, rica e chique
mas cheia de tric-tric.
Bom... nem muito cheia.

No vilarejo
nada era atulhado
repleto ou abarrotado.
E como seus antepassados
Dona Mercedes
tinha boa criadagem.
E não tinha o que fazer
além de inventar bobagem.
Então, criava mania
como seus ancestrais faziam.
Era píssica por limpeza.

A sua casa brilhava, tinia.
Uma beleza.
Empinando todo o corpo
e mais ainda o nariz
Dona Mercedes foi pedindo
com modos de imperatriz:
— Detergente, cera, álcool
desinfetante, óleo de peroba,
anil
sabão em pó, sabão em pedra
e bombril.

E pediu, empavonada
vários “sprays” do contra
nenhum a favor de nada.
“Spray” contra ferrugem
contra odor
contra pulga, traça e bolor.
E, finalmente, pediu
“spray” contra barata.
Ao que Manuel caraminholando
será que viu, que não viu
entendeu "O Democrata".
Sem despedidas
Dona Mercedes vai-se embora.
E já do lado de fora
a Manuel recomenda:
 — Jarbas, meu motorista,
virá buscar a encomenda.

E assim, meditabundo
caraminholando, cogitabundo
será que vi ou não vi
Manuel passou o dia
a atender a freguesia.
E foram tantos seus feitos
que não dá pra contar todos.
Mas houve mais casos notáveis.
Esses, de contar
indispensáveis.      

Foi o caso de Belinda
menina novinha ainda
e já em véspera de casamento
porque tinha no pensamento
que não se pode viver só.
Ideia que na sua família
passava de mãe pra filha
desde sua tatatatataravó.
Com quem também se aprendia
que a palavra alegria
e a palavra esperança
significavam matrimônio
aliança.

Belinda
com maneiras meiguinhas
o dengoso das noivinhas
e aquele olhar apaixonado
(bem... nem tanto assim...
no vilarejo
nada era ardente
ou arrebatado...)
fez seu pedido de sempre.
Todo mês era igual.
Uma peça pro enxoval.
— Manuel,
quero uma camisola florida!
Ao que Manuel cismarento
voando no pensamento
será que vi ou não vi?
compreendeu uma bola colorida.
Que colocou numa caixa
com um laço de fita amarela.
Belinda agradeceu
e correu pro seu chá-de-panela.

Outro fato interessante
deu-se com Ataíde
da família Amaral.
Como seus contemporâneos
e todos seus antepassados
era um intelectual.
Professor do vilarejo
lecionava português
latim, história e francês.
Um moço sisudo
mas não muito carrancudo
porque no vilarejo
ninguém era trombudo assim...
— Manuel, vê pra mim
um dicionário de latim.

Manuel meditando
vacilando
entre o vi e o não vi
entrega-lhe um pacote
com uma garrafa de gim.
Ataíde não repara.
Não é hábito conferir.
O pacote nem encara
pois tem pressa de sair.

Depois de Ataíde Amaral
houve o caso do Raimundo.
O que vivia num outro mundo.
Não. Nem tão noutro assim...
No vilarejo
ninguém era desvairado
extravagante ou alucinado.
Raimundo era um louco constante.
Só um pouco da realidade
distante.
Um louco conveniente.
Manso. Decente.
Dizia esquisitices meras.
Pequenas sandices, quimeras.
E nunca alterava a voz.
Falava baixinho
como seus pais e avós.

Raimundo, aos cochichos
como se estivesse com medo
olhando de rabicho
pede a Manuel em segredo:
— Eu quero um raio de sol.
E Manuel ruminando
será que vi ou não vi
entrega-lhe, prontamente,
um urinol.
Que Raimundo pegou espantado
com muito cuidado
e depressa se escafedeu.
Pela primeira vez atendiam
a um sussurrado pedido seu.
Manuel nem se dá conta
da situação que ele apronta.
Pensando se viu ou não viu
tão alheio, distraído
nem vê que o vilarejo
é inteiro sacudido.
Parece que não foi nada.
Simples casos de troca.
Ah, que coisa mais boboca...
Mas no pacato vilarejo
Manuel ficou na história
causou mudanças notórias
que só ele mesmo não viu...
Começou por Serafina
frente àquele bacalhau
gritou tanto, fez escândalo
acabou passando mal.

Pensou ir ao armazém
fazer troca do embrulho
mas ficou abatumada
depois do muito barulho.
E de tanto sapatear
perdeu as forças, coitada
a coragem de voltar.

Chorava preocupada:
 — Vou trair a tradição.
O que fariam as outras inas
nessa mesma situação?

Mas como estava na hora
da freguesia ir chegando
Serafina foi pra cozinha
pro bacalhau se entregando.

Os bolinhos foram poucos.
Gosto bom. Hum... coisa de
 louco.
Foi um tal de repetir
todo mundo que um provava
ia mais outro pedir.

E assim de boca em boca
os salgados de Serafina
foram logo consagrados
coisa boa, muito fina.

E então o que se viu
foi uma baita confusão:
dona-de-casa virando passista
barbeiro virando dentista
executivo virando artesão.
Imitando Serafina
que mudou de profissão.
Entre doces e salgados
salgados passou a fazer.
Esqueceu da tradição
optou pelo prazer.

Depois foi Dona Mercedes
pela troca afetada.
Viu o livro "O Democrata"
ficou brava, enfezada.
Mais que isso. Furibunda.
Criou tanta confusão...
Imagine a barafunda.

Esqueceu-se da elegância
e sua pose foi a pique.
Teve ataque, desmaio
esperneou e deu chilique.
Pra cozinha foi Dinalva
pro banheiro foi João
pra despensa foi Antônia
eram todos empregados
à procura da amônia.
E foi tanta agitação
que à noite teve insônia.

Então fazer o quê?
Limpeza ao anoitecer?
Abriu o livro e pôs-se a ler...

Quantas ideias! Novas questões!
Em cada página, um choque.
Havia mundo maior
que detergente em estoque!

E nunca mais parou de ler.
Teve sede de saber.
Organizou simpósios
debates, congressos.
Dona Mercedes se expressando
era mais que um sucesso.

E então o que se viu
foi um imenso blábláblá.
Dona Mercedes
espalhou sua cultura
matérias lançou em fartura
política, economia
esporte, dança, magia
ioga e filosofia
e foi um tal de conversar.
Os assuntos eram tantos
nem dava pra boca fechar...

Belinda
no dia seguinte
arrumava sua bagagem
pois após o casamento
seguiria em viagem
estreando sobrenome
vestido, sapato e anel.
Iria em lua-de-mel.

Abriu então a caixa
soltando o laço de fita.
De dentro pulou uma bola
colorida, leve, bonita.

Belinda, em espanto
segue a bola com o olhar.
Toca nela com o polegar.
Quica e rola então a bola.
Belinda vai devagar.

Toca nela outra vez.
A bola salta com rapidez.
Belinda corre
e alcança a bola no ar.
Longe do pensamento
vai ficando o casamento
só pensando em brincar.
Passava da hora marcada
o noivo já estava a esperar
enquanto Belinda jogava
e nem ao menos ouvia
os gritos do pai, da mãe e da tia:
— Anda, ó a hora, Belinda!
Só sabia que eram lindas
as cores se misturando
daquela bola pulando
e ela, menina, brincando...

E então o que se viu
foi um renovar de esperanças.
Indo atrás de Belinda
moços, velhos e crianças
viam que a beleza
do presente e futuro
era ser uma caixa de surpresa...

Ataíde Amaral
ia pra escola pensando:
como podem os alunos
acharem inútil o latim?
Tanto esforço, tanto estudo
pra duvidarem assim...
Quem sabe palavras novas
encantasse a gurizada?
Talvez uma palavra engraçada...
Mas será que em latim tem?

Resolveu fazer consulta
procurar vocabulário.
Ver seus alunos dormindo
fazia sentir-se um otário.
E não deu outra.
Recorreu ao dicionário.
Foi então que deu mil urros:
— Isso não é o pai-dos- -burros!!!
Gritou tanto, tanto, tanto
que sua boca secou.
Abriu a garrafa de gim.
Deu um gole, não molhou.
Deu um outro, melhorou.

Mais outro, mais outro, mais
outro
aí sim, aliviou...
Chegou na escola cantando.
No início muito mal.
Mas que plateia assanhada!
Dava força a meninada:
— Que lição genial!
— Legal!
Aos poucos foi musicando
criando letras, inventando.
Tão grande sabedoria
a favor da poesia
em tão lindas canções.
Ah, Ataíde atingiu corações...       

E então o que se viu
no compasso de Ataíde
foi que as noites tinham vida.
Podiam ser bem divertidas.
Ao som do “rock”, do samba, do “reggae” do
frevo e lambada
uma gente animada
cantando, dançando
até de madrugada...

No Raimundo
que coisa estranha
foi o efeito da troca.
Pulava mais que pipoca
pra compreender o urinol:
— Meu Deus, que objeto
esquisito!
Não é uma vaca nem é pirulito.
Um urubu ou um saxofone?
Ora, se eu nada escuto
não é gramofone.
Não é avião.
Será bicho-papão?
Ou será bicho-preguiça?
Nem é verruga, ET ou linguiça.
Engraçado... Não é líquido.
Não é amarelo. Não é gasoso.
Material forte. Poderoso.
E tem alça. Será perigoso?
Mas é tão silencioso...
Tem um toque gelado.
E que branco mais leitoso!
Essa não, que gozado...
Não tem luz nem é caloroso.
Então não é raio de sol!
E tanto esforço fez com a mente
que concluiu: — É urinol!

Adorou raciocinar.
Gostou tanto, tanto, tanto
que quis tudo clarear.
E começou com a pergunta:
— Como obter as respostas
se as coisas não questionar?

E então o que se viu
pelo prisma de Raimundo
foi nova visão do mundo
mais ampla, bem maior.
Ideias, pra se aceitar
só depois de perguntar:
— Onde?
— Como?
— Por quê?
— Quando?
— Ora, pra quê?

Foi isso o que se viu
no pacato vilarejo.
Aliás, pacato, não.
Vilarejo, também não.
O que era vilarejo
é uma cidade bem grande
com imensas avenidas
ruas largas e estreitas
vai-em-frente e contra-mão
indústria, fumaça, edifício
carro, ônibus e caminhão.
É cidade com governo
tem prefeito, vereador
e em família de engenheiros
pode surgir um ator.
E cada um tem o direito
de escolher seu amor...

E como em todo lugar
tem também uma praça.
Florida, cuidada
uma graça
que chamaram de Manuel.
Mas o herói da cidade
não toma conhecimento
não teve a felicidade
de ver o acontecimento.
Anda meio alucinado.
Ou melhor, bem desvairado
popular ruim da bola.
Até hoje só rumina
matuta caraminhola
vi ou não vi?...

ENTENDENDO O CONTO

1)   Sobre o que se trata este conto?
Trata-se de uma narrativa em versos, que focaliza a importância da mudança de estado de apatia de um vilarejo para euforia, transformando em ações positivas.

2)   Como eram os moradores  do vilarejo?
Eram pessoas simples, que viviam o dia-a-dia sem novidades, tudo igual sempre.

3)   Escreva o nome dos personagens femininos. Explique o que cada um faz na história.
Serafina – doceira
Dona Mercedes – senhora fina, rica e chique. Adorava limpeza.
Belinda – menina novinha que ia se casar.

4)   Escreva o nome dos personagens masculinos. Explique o que cada um faz na história.
Jarbas – motorista de Dona Mercedes.
Manuel – dono do armazém
Ataíde – professor
Raimundo – era desvairado/louco.

5)   Relacione as mudanças referentes aos personagens.
Serafina: Deixou de ser doceira e virou salgadeira.
Dona Mercedes: Deixou de ser madame, nunca mais parou de ler. Organizou simpósios, debates, congressos sobre política.
Belinda: Percebe-se que ainda era criança, começou a brincar com a bola colorida e não quis mais se casar.
Ataíde Amaral: Depois de uns goles de gim, descobriu a alegria de ensinar musicando.
Raimundo: Ele adorou raciocinar.
Manuel: Ficou meio alucinado, bem desvairado.

6)   Comente: “O que Manuel viu”?
Resposta Pessoal.
Sugestão: Segundo o conto Manuel sequer teve a certeza que viu alguma coisa, pois estava sonolento quando foi ao banheiro de madrugada, pode ter sido uma alucinação.

7)   Indique os antônimos:
alegria: tristeza, angústia.
felizes: infelizes, tristonhos.
contentes: descontentes, aborrecidos.
convenientes: desconvenientes, impertinentes.

8)   Explique a diferença entre “lenda” e “fato”.
Lenda é uma narrativa fantasiosa transmitida pela tradição oral através dos tempos.
Fato é alguma coisa que aconteceu de verdade. Algo verídico.

9)   Aponte os “efeitos colaterais” da visão de Manuel.
O vilarejo virou uma cidade bem grande, com indústria, fumaça, edifício, carro, ônibus e caminhão.
E todos tiveram o direito de serem o que quiserem.

10)              Faça um resumo do conto lido.
Narra a história de um pacato vilarejo. Ali tudo se mostrava estável, “na uniformidade dos dias”, a vida transcorria sem surpresas. Até que, uma noite, Manuel habitante do vilarejo, dono do armazém, fica acordado e vê algo muito estranho. Ninguém sabe o que ele viu, nem ele mesmo tem a certeza de ter visto, mas desde então a cidadezinha nunca mais foi a mesma. E de tão perturbado, começou a atender seus fregueses, errando suas mercadorias. Mas foi o erro cometido frente ao que lhe pediu Belinda que contribuiu para renovar esperanças e dinamizar aquele que deixou de ser um pacato vilarejo.