terça-feira, 2 de maio de 2017

FOGO MORTO - JOSÉ LINS DO REGO - (FRAGMENTO) COM GABARITO

FOGO MORTO
José Lins do Rego

        A luz das lanternas sujava a brancura do luar. Passou a carruagem na porta do Capitão Vitorino, com os cavalos arrastando-se num passo de cansados. Vitorino viu no carro o velho sentado com a família. O senhor do engenho não lhe tirou o chapéu, mas ouviu bem a voz de D. Amélia, dando-lhe boa-noite. O cachorro do Lula pensava que ele fosse um camumbembe qualquer. Botara-o uma vez fora de sua casa. Aquilo era uma leseira de marca. Trepado naquele carro, e com o cercado vazio, as várzeas no mato, o engenho parado. A lua cobria os arvoredos que o vento brando sacudia de neve. Naquele silencia, ouvia as campainhas do cabriolé, de longe, tinindo, enquanto os cachorros começaram a latir para a lua. Cantavam os galos no poleiro de Sinhá Adriana.
        --- Minha velha, amanhã tenho que ganhar os campos. Não sou marica para ficar dentro de casa. As eleições estão aí e nestes últimos dias nada tenho feito. Vou dar uma queda no José Paulino que vai ser um estouro.
        --- Vitorino, eu te acho ainda muito machucado.
       --- Não tenho mais nada. Você não viu o compadre e o cego como estavam andando? Apanharam muito e não ficaram de papo pro ar numa rede como mulher parida. Um homem que se preza não deve se entregar. Vou para a cabala, amanhã, na feira de Serrinha. Quero olhar para a cara de Manuel Ferreira. Este cachorro vive na Serrinha roubando o povo com parte de que é deputado. É outra safadeza de José Paulino, deixar que vá para a Assembleia do Estado num tipo como Manuel Ferreira. Boto abaixo tudo isto.
        --- É, Vitorino, mas tu vai sofrer outra desfeita.
        --- Que desfeita? Um homem que luta não é desfeiteado. Cala esta boca. Peguei-me com a força e botei três réus na rua. Isto é ser desfeiteado? Por que você não se danou com o filho? Era melhor. Pelo menos não me vinha com estas palavras de ofensa. O seu marido, mulher, não traz desfeita para casa. Não me diga mais uma coisa desta.
        Levantou-se outra vez, e saiu para a frente de casa.
        Vitorino, tem cuidado com o sereno, tu podes apanhar um resfriado. Ontem levaste a noite tossindo. Bota o chapéu na cabeça.
        O velho não respondeu. Os cachorros latiam desesperadamente.
        --- Estes pestes não param. Parece que querem morde a lua.
        --- Entra para dentro, Vitorino, está muito frio. A friagem da lua te faz mal.
        Ele não respondeu. No outro dia sairia pelo mundo para trabalhar pelo povo. Para ele, Antônio Silvino e o Tenente Maurício, José Paulino e Quinca do Engenho Novo, todos valiam a mesma coisa. Quando entrasse na casa da Câmara sacudiriam flores em cima dele. Dariam vivas, gritando pelo chefe que tomava a direção do município. Mandaria abrir as portas da cadeia.  Todos ficariam contentes com o seu triunfo. A queda de José Paulino seria de estrondo. Ah, com ele não havia grandes mandando em pequenos. Ele de cima quebraria a goga dos parentes que pensavam que a vila fosse bagaceira de engenho.
        --- Vitorino, vem dormir.
        --- Já vou.
        E, escorado no portal da casa de taipa, de chão de barro, de paredes pretas, Vitorino era dono do mundo que via, da terra que a lua branqueava, do povo que precisava de sua proteção.

                                   REGO, José Lins do. Fogo Morto. 14. ed. Rio de Janeiro,
                                                                                  José Olympio,1973. p.287-8.

Camumbembe: vadio, vagabundo.
Leseira: moleza, preguiça; tolice.
Cabriolé: carruagem leve, de duas rodas, puxada por um cavalo.
Cabala: trama, conspiração.
Desfeita: ofensa, injúria; derrota.
Goga: vaidade, orgulho.

1 – Na visão do Capitão Vitorino, como o Coronel Lula de Holanda o considera?
        Como um vadio, um vagabundo qualquer.

2 – Segundo o Capitão Vitorino, o Coronel Lula não tinha razão para ser tão orgulhoso, deixando de cumprimenta-lo. O que o levava a pensar assim?
        O Coronel Lula não tinha razão para ser tão orgulhoso porque estava parado, o cercado vazio e as várzeas no mato.

3 – Qual é a intenção do Capitão Vitorino na sua primeira fala à mulher?
        Acabar com o José Paulino.

4 – Como sinhá Adriana reage diante do comportamento de seu marido?
        Sinhá Adriana ainda o considera muito machucado, sem condições para brigar ou lutar por qualquer coisa.

5 – A crítica considera o Capitão Vitorino um herói quixotesco. “Quixotesco” é um adjetivo que se refere a Dom Quixote, personagem criada pelo escritor espanhol Miguel de Cervantes. Esse adjetivo designa uma pessoa ingênua, sonhadora, romântica ou mesmo aquela que se envolve em confusões. Quais as atitudes do Capitão Vitorino que podem ser consideradas quixotescas?
        Sair pelo mundo e lutar pelo povo; sentir-se dono do mundo e achar que o povo precisava de sua proteção.


VIDAS SECAS - GRACILIANO RAMOS - (FRAGMENTO) COM GABARITO

TEXTO LITERÁRIO: VIDAS SECAS
                                       Graciliano Ramos


        Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos – e a lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
        Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo, picou-o fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao bingo, pôs-se a fumar regalado.
        --- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
        Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra.
        Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a, murmurando:
        --- Você é um bicho, Fabiano.
        Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades.
        Chegara naquela situação medonha – e ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.
        --- Um bicho, Fabiano.
        Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto, passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de mucunã. Viera a trovoada. E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos, resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as marcas de ferro.
        Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali. Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os mandacarus e os xíquexiques. Era mais forte que tudo isso, era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinha Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.
        Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
        Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia! Engano. (...) Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor, hóspede que se demorava demais, tomava amizade à casa, ao curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha abrigado uma noite.
        Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a carícia, enterneceu-se:
        --- Você é um bicho, Baleia.
        Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio, Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.

  RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 27. ed. São Paulo, Martins, 1970. p. 53-5.

Juazeiro: árvore característica da caatinga nordestina.
Camarinha: quarto; esconderijo de malfeitores no mato.
Gretado: rachado.
Esgaravatar: limpar.
Aió: bolsa de caça.
Binga: lampião de querosene; isqueiro tosco.
Imbu: fruto do imbuzeiro; árvore própria da caatinga.
Mucunã: espécie de planta.
Quipá: vegetação nordestina.
Mandacaru: grande cacto.
Xiquexique: espécie de cacto.
Catingueira: arbusto típico da caatinga.
Baraúna: espécie de árvore.
Gutural: relativo ou pertencente à garganta.
Cambaio: de pernas fracas, trôpego.

1 – “Fabiano ia satisfeito.” Qual é a causa dessa satisfação?
       A sensação de estar arrumado.

2 – O que leva Fabiano a sentir-se um homem?
       O fato de ter encontrado um lugar para se instalar juntamente com toda a sua família.

3 – Sentir-se homem foi imprudente de sua parte. Como ele se sente de fato?
       Ele se sentia um bicho, ocupado em tomar conta de coisas alheias.

4 – Fabiano e sua família não podiam integrar-se à terra em que estavam. A que fato isso se deve?
       Isso se deve ao fato de a terra não pertencer a eles.

5 – No texto há três referências à animalização de Fabiano. Destaque os números das linhas em que tais referências ocorrem.
       Linhas 24, 47,58 e 59.

         

GRANDE SERTÃO: VEREDAS- GUIMARÃES ROSA - (FRAGMENTO) COM GABARITO

 GRANDE SERTÃO: VEREDAS
  João Guimarães Rosa

        Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na hora. Melhor alembro. Eu estava sozinho, num repartimento dum rancho, rancho velho de tropeiro, eu estava deitado numa esteira de taquara. Ao perto de mim, minhas armas. Com aquelas, reluzentes nos canos, de cuidadas tão bem, eu mandava a morte em outros com a distância de tantas braças. Como é que, dum mesmo jeito, se podia mandar o amor?
        O nome Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é todo lambente – “Diadorim, meu amor...” Como era que eu podia dizer aquilo? Explico ao senhor: como se drede fosse para eu não ter vergonha maior, o pensamento dele que em mim escorreu figurava diferente, num Diadorim assim meio singular, por fantasma, apartado completo do viver comum, desmisturado de todos, de todas as outras pessoas – como quando a chuva entre-onde-os-campos. Um Diadorim só para mim. Tudo tem seus mistérios. Eu não sabia. Mas, com minha mente, eu abraçava com meu corpo aquele Diadorim – que não era de verdade. Não era? A ver que a gente não pode explicar essas coisas. Eu devia de ter principiado a pensar nele do jeito de que decerto cobra pensa: quando mais-olha para um passarinho pegar. Mas – de dentro de mim: uma serpente. Aquilo me transformava, me fazia crescer dum modo, que doía e prazia. Aquela hora, eu pudesse morrer, não me importava.

                         GUIMARÃES ROSA. Grande sertão: veredas. 1. ed. São Paulo.
                                                                                 Abril Cultural, 1983. p. 206-7.
Drede: adrede; de propósito, de caso pensado.

1 -  O que Riobaldo sentia por Diadorim era amor ou amizade? Transcreva a frase do texto que justifica a sua resposta.
       Sentia amor. “...fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor mesmo amor...”

2 – Logo que descobriu sua afeição por Diadorim, Riobaldo sentiu-se culpado? Justifique sua resposta.
       Não, pois Riobaldo afirmou que não se reprovou na hora.

3 – Como se sente o narrador ao comparar sua atividade profissional com sua capacidade de amar?
       O narrador se sente admirado, atônito.

4 – Para Riobaldo, Diadorim era uma pessoa que se diferenciava das outras. Destaque do texto as expressões que comprovam essa afirmativa.
       “... um Diadorim assim meio singular, (...) apartado completo do viver comum, desmisturado de todos...”

5 – O amor que sentia por Diadorim ia se transformando e causando-lhe conflito. Transcreva da penúltima frase do texto os dois verbos que revelam esse conflito interno.
       “Doía” e “prazia”.


segunda-feira, 1 de maio de 2017

POEMA: ERRO DE PORTUGUÊS - OSWALD DE ANDRADE - COM GABARITO


POEMA; ERRO DE PORTUGUÊS

Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
                             ANDRADE Oswald de. Erro de português. In:___________.
                                                                Poesias reunidas. 5. ed. Rio de Janeiro,
                                                                           Civilização Brasileira, s.d. p. 177.

1 – Identifique no texto três características do Modernismo.
       Verso livre, ausência quase total de pontuação, vocabulário coloquial, humor, nacionalismo, síntese.

2 – As palavras português (no título do poema) e pena (no 4º verso) tem duplo significado. Identifique-os.
       Português: a língua portuguesa e o homem da raça portuguesa;
       Pena: revestimento de aves e dó, piedade.

3 – No Manifesto Pau-Brasil há um trecho que diz: “O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens”. Que verbo do poema corresponde ao verbo dominar do trecho do Manifesto?
       Vestir, que aqui pode significar impor uma cultura, colonizar.

4 – Num trecho do Manifesto de Antropofagia aparece a seguinte afirmativa: “Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade”. Que palavra do poema lido tem relação de significado com felicidade no contexto do manifesto?
A palavra sol.


05 – Leia um trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha, texto que você provavelmente já conhece e que foi o primeiro documento escrito no Brasil: “Na noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros que as naus desviaram-se do rumo, e especialmente a capitaina”.
a)   Em que verso o poeta Oswald de Andrade retoma essa informação da Carta?
No segundo verso.

b)   Que adjetivo o poeta utiliza para “modernizar” a linguagem da Carta de Caminha?
Bruta.

06 – De acordo com o poema, o tempo meteorológico determinou a relação de oposição entre o português e o índio. Através de que elementos da natureza se manifesta essa oposição?
      Sol e chuva. 
        
07 – Considerando os elementos colonizador (português) e colonizado (índio), que conotação assumem no poema os verbos vestir e despir?
      Vestir = sobrepor uma cultura a outra.
      Despir = fazer perder as características culturais.

08 – Há um verso do poema em que a predominância da função emotiva da linguagem sintetiza o ponto de vista do autor sobre a relação português – índio. De que verso se trata?

      “Que pena”. 



POEMA: VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA - MANUEL BANDEIRA -COM GABARITO


POEMA – VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Manuel Bandeira

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconsequente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d`água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcaloide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste d não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei –
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.

                                        BANDEIRA, Manuel. Vou-me embora pra Pasárgada.
                                        In: ______. Poesia completa & prosa. Rio de Janeiro.
                                                                                            Aguilar, 1967. p. 264-5.

1 – Levando em conta a informação que precede o poema e a biografia de Bandeira, qual é o significado de Pasárgada para o eu-lírico?
       É o mundo imaginário onde ele poderia ser uma criança como as outras, sem as limitações da doença.

2 – Identifique os espaços indicados pelos advérbios lá e aqui.
       Lá = Pasárgada; Aqui = o espaço real do poeta.

3 – Na terceira estrofe são enumeradas ações bastante corriqueiras. Por que elas assumem tanta importância para o poeta?
       Porque são coisas que um indivíduo doente está privado de fazer, embora sejam comuns.

4 – Compare esse poema com a “Canção do exílio”. Que semelhança é possível apontar entre os dois?
       O aluno deverá deduzir que os dois poetas opõem um mundo idealizado a um mundo concreto.



SÃO BERNARDO - GRACILIANO RAMOS - (FRAGMENTO) COM GABARITO

TEXTO LITERÁRIO: SÃO BERNARDO
                                         Graciliano Ramos

        Nove horas no relógio da sacristia.
        O nordeste começou a soprar, e a porta bateu com fúria. Mergulhei os dedos nos cabelos.
        --- Que estás fazendo, peste?
        O cabrito fugiu.
        Nem sei quanto tempo estie ali, em pé. A minha raiva se transformava em angústia, a angústia se transformava em cansaço.  
        --- Para quem era a carta?
        E olhava alternadamente Madalena e os santos do oratório. Os santos não sabiam, Madalena não quis responder.
        O que me espantava era a tranquilidade que havia no rosto dela. Eu tinha chegado fervendo, projetando matá-la.
Podia viver com a autora de semelhante maroteira?
        À medida, porém, que as horas se passavam, sentia-me cair num estado de perplexidade e covardia.
        As imagens de gesso não se importavam com a minha aflição. E Madalena tinha quase a impassibilidade delas. Por que estaria assim tão calma?
        Afirmei a mim mesmo que matá-la era ação justa. Para que deixar viva mulher tão cheia de culpa? Quando ela morresse, eu lhe perdoaria os defeitos.
        As minhas mãos contraíam-se, movia-se para ela mas agora as contrações eram fracas e espaçadas.
        --- Fale, exclamei com voz mal segura.
        --- Para quê?
        --- Há uma carta. Eu preciso saber, compreende?
        Meti a mão no bolso e apresentei-lhe a folha, já amarrotada e suja. Madalena estendeu-a sobre a mesa, examinou-a, afastou-a para um lado.
        --- Então?
        --- Já li.
        A vela acabou-se. Acendi outra e fiquei com o fósforo entre os dedos até queimar-me.
        --- Diga alguma coisa.
        Pareceu-me que havia ali um equívoco e que, se Madalena quisesse, tudo se esclareceria. O coração dava-me coices desesperados, desejei doidamente convencer-me da inocência dela.
        --- Para quê? murmurou Madalena. Há três anos vivemos uma vida horrível. Quando procuramos entender-nos, já temos a certeza de que acabamos brigando.
        --- Mas a carta?
        Madalena apanhou o papel, dobrou-o e entregou-me:
        --- O resto está no escritório, na minha banca. Provavelmente esta folha voou para o jardim quando eu escrevia.
        --- A quem?
        --- Você verá. Está em cima da banca. Não é caso para barulho.
Você verá.
        --- Bem.
        Respirei. Que fadiga!
        --- Você me perdoa os desgostos que lhe dei, Paulo?
        --- Julgo que tive as minhas razões.
        --- Não se trata disso. Perdoa?
        Rosnei um monossílabo.
        --- O que estragou tudo foi esse ciúme, Paulo.

                                                           RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 12. ed.
                                                                       São Paulo, Martins, 1970. p. 218-9.
Nordeste: vento que sopra desse ponto.
Maroteira: velhacaria, malandrice, patifaria.
Perplexidade: qualidade ou estado de quem está admirado, espantado, atônito.
Impassibilidade: qualidade de impassível, indiferente à dor ou à alegria.

1 – Que fato desencadeia o ciúme de Paulo Honório?
       A carta que Madalena estava escrevendo.

2 – Logo no início do texto, o próprio Paulo Honório demonstra consciência de seus sentimentos. Que sentimentos são esses?
       Raiva e angústia.

3 – Ao perguntar a Madalena para quem era a carta, Paulo Honório parecia estar muito inquieto. Que atitude sua demonstra isso?
       O fato de olhar alternadamente para Madalena e para os santos do oratório, contrair as mãos...

4 – A raiva que ele sentia de Madalena chegou a um clímax. Em que momento? 
       Quando ele deseja matá-la.

5 – Apesar da insistência de Paulo Honório, Madalena não vê sentido em responder-lhe. Por quê?
       Porque vivem muito mal há três anos e a procura de um entendimento sempre resulta em briga.
   


AMOR E SANGUE - ALCÂNTARA MACHADO - (FRAGMENTO) COM GABARITO

LITERATURA -  AMOR E SANGUE
                                  ÂLCANTARA MACHADO


        Sua impressão: a rua é que andava, não ele. Passou entre o verdadeiro de grandes bigodes e a mulher de cabelo despenteado.
        --- Vá roubar no inferno, Seu Corrado!
        Vá sofrer no inferno, Seu Nicolino! Foi o que ele ouviu de si mesmo.
        --- Pronto! Fica por quetrocentão.
        --- Mas é tomate podre, Seu Corrado!
        Lá indo na manhã. A professora pública estranhou aquele ar tão triste. As bananas na porta da Quitanda Tripoli Italiana eram de ouro por causa do sol. O Ford derrapou, maxixou, continuou bamboleando. E as chaminés das fábricas apitavam na Rua Brigadeiro Machado.
        Não adiantava nada que o céu estivesse azul porque a alma de Nicolino estava negra.
        --- Ei, Nicolino! Nicolino!
        --- Que é?
        --- Você está ficando surdo, rapaz! A Grazia passou agorinha mesmo.
        --- Des-gra-ça-da!
        --- Deixa de fita. Você joga amanhã contra o Esmeralda?
        --- Não sei ainda.
        --- Não sabe? Deixa de fita, rapaz! Você...
        --- Ciao.
        --- Veja lá, hein! Não vá tirar o corpo na hora. Você é a garantia da defesa.
        A desgraçada já havia passado.
        Ao Barbeiro Submarino.
        Barba: 300 réis. Cabelo: 600 réis.
        Serviço Garantido.
        --- Bom dia!
        Nicolino Fior d`Amore nem deu resposta. Foi entrando, tirando o paletó, enfiando outro branco, se sentando no fundo à espera dos fregueses. Sem dar confiança. Também Seu Salvador nem ligou.
        A navalha ia e vinha no couro esticado.
        --- São Paulo corre hoje! É o cem contos!
        O Temístocles da Prefeitura entrou sem colarinho.
        --- Vamos ver essa barba muito bem feita! Ai, ai! Calor pra burro. Você leu no Estado o crime de ontem, Salvador? Banditismo indecente.
        --- Mas parece que o moço tinha razão de matar a moça.
        --- Qual tinha razão nada, seu! Bandido! Drama de amor cousa nenhuma. E amanhã está solto. Privações de sentidos. Júri indecente, meu Deus do céu! Salvador, Salvador... – cuidado aí que tem uma espinha - ... este país está perdido!
        --- Todos dizem.
        Nicolino fingia que não estava escutando. E assobiava a Scugnizza.
        As fábricas apitavam.
        Quando Grazia deu com ele na calçada abaixou a cabeça e atravessou a rua.
        --- Espera aí, sua fingida.
        --- Não quero mais falar com você.
        --- Não faça mais assim pra mim, Grazia. Deixa que eu vá com você. Estou ficando louco, Grazia. Escuta. Olha, Grazia! Grazia! Se você não falar mais amigo eu me mato mesmo. Escuta. Fala alguma cousa por favor.
        --- Me deixa! Pensa que eu sou aquela fedida da Rua Cruz Branca?
        --- O quê?
        --- É isso mesmo.
        E foi almoçar correndo.
        Nicolino apertou o fura-bolos entre os dentes.
        As fábricas apitavam.
        Grazia ria com a Rosa.
        --- Meu irmão foi e deu uma bruta surra na cara dele.
        --- Bem feito! Você é uma danada, Rosa. Xi! ...
        Nicolino deu um pulo monstro.
        --- Você não quer mesmo mais falar comigo, sua desgraçada?
        --- Desista!
        --- Mas você me paga, sua desgraçada!
        --- N Ã-Ã-O!
        A punhalada derrubou-a.
        --- Pega! Pega! Pega!
        --- Eu matei ela porque estava louco, Seu Delegado!
        Todos os jornais registaram essa frase que foi dita chorando.

                                   Eu estava louco,                   B
                                   Seu Delegado!                       I
                                   Matei por isso,                      S
                                   Sou um desgraçado!

         O estribilho do Assassino Por Amor (Canção da atualidade para ser cantada com a música do “Fubá”, letra de Spartaco Novais Panini) causou furor na zona.
              ALCÂNTARA MACHADO. Amor e sangue. In:--- Novelas paulistanas.
                                                     4. ed. São Paulo, Jose Olympio, 1976. p. 22-5.

1 – O texto está dividido em cinco partes, separadas por um espaço em branco. Na primeira parte, identifique os elementos do ambiente físico que indicam uma paisagem urbana moderna.
        O Ford, as chaminés das fábricas.

2 – Qual é a profissão de Nicolino?
        Ele é barbeiro.

3 – O nome das personagens (Nicolino Fior d`Amore, Grazia, Corrado) Identificam sua origem. De que origem se trata?
        São italianos ou descendentes de italianos.

4 – Na segunda parte do conto, para introduzir o ambiente (uma barbearia) onde terá lugar a cena, o narrador utiliza um recurso diferente da simples descrição. De que recurso se trata?
        Reproduz-se o cartaz ou placa que está na entrada da barbearia (utilização da linguagem da propaganda).

5 – Entre a penúltima e a última do conto, fica implícito que aconteceu algum fato que não é narrado mas que o leitor pode deduzir. Esse é um recurso típico da linguagem cinematográfica. Que fato, na sequência da narrativa, fica implícito nesse trecho?
        A prisão de Nicolino e sua condução à Delegacia.