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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

CRÔNICA: O ABRIDOR DE LATAS - MILLÔR FERNANDES - COM GABARITO

 Crônica: O abridor de latas

             Millôr Fernandes

        Pela primeira vez, no Brasil, um conto escrito inteiramente em câmera lenta.

        Quando esta história se inicia, já se passaram quinhentos anos, tal a lentidão com que ela é narrada. Estão sentadas à beira de uma estrada três tartarugas jovens, com 800 anos cada uma, uma tartaruga velha com 1.200 anos, e uma tartaruga bem pequenininha, com apenas 85 anos. As cinco tartarugas estão sentadas, dizia eu. E dizia-o muito bem pois elas estão sentadas mesmo. Vinte e oito anos depois do começo desta história a tartaruga mais velha abriu a boca e disse:

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiUC6Fih72nUaIBr1ficJzw2USrlNehy0obl3ZHghpM8JN7lyDR_fexIJMdP-DEoqQWUbt7iZth4v7CG1DzCmTjuKNfbiUEltFeH5vRnsEHUv1fSGdJZ41DCjyj1M9U-KXiRx_atvkNom4qCiGRwLoBx7uu6ZZCwFqmIuhdSJQawlDNl6vubrQMev153iU/s1600/TARTARUGAS.jpg


        — Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia desta vida?

        — Formidável! — disse a tartaruguinha mais nova, doze anos depois. — Vamos fazer um piquenique?

        Vinte e cinco anos depois, as tartarugas se decidiram a realizar o piquenique. Quarenta anos depois, tendo comprado algumas dezenas de latas de sardinhas e várias dúzias de refrigerantes, elas partiram. Oitenta anos depois, chegaram a um lugar mais ou menos aconselhável para um piquenique.

        — Ah — disse a tartaruguinha, oito anos depois —, excelente local este!

        Sete anos depois todas as tartarugas tinham concordado. Quinze anos se passaram e, rapidamente, elas tinham arrumado tudo para o convescote. Mas, súbito, três anos depois, elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas.

        Discutiram e, ao fim de vinte anos, chegaram à conclusão de que a tartaruga menor devia ir buscar o abridor de latas.

        — Está bem — concordou a tartaruguinha três anos depois —, mas só vou se vocês prometerem que não tocam em nada enquanto eu não voltar.

        Dois anos depois as tartarugas concordaram imediatamente que não tocariam em nada, nem no pão nem nos doces. E a tartaruguinha partiu.

        Passaram-se cinquenta anos e a tartaruga não apareceu. As outras continuavam esperando. Mais dezessete anos e nada. Mais oito anos e nada ainda. Afinal uma das tartarugas murmurou:

        — Ela está demorando muito. Vamos comer alguma coisa enquanto ela não vem?

        As outras não concordaram, rapidamente, dois anos depois. E esperaram mais dezessete anos. Aí outra tartaruga disse:

        — Já estou com muita fome. Vamos comer só um pedacinho de doce que ela nem notará.

        As outras tartarugas hesitaram um pouco mas, quinze anos depois, acharam que deveriam esperar pela outra. E se passou mais um século nessa espera. Afinal a tartaruga mais velha não pôde mesmo e disse:

        — Ora, vamos comer mesmo só uns docinhos enquanto ela não vem.

        Como um raio as tartarugas caíram sobre os doces seis meses depois. E justamente quando iam morder o doce ouviram um barulho no mato por detrás delas e a tartaruga mais jovem apareceu:

        — Ah — murmurou ela —, eu sabia, eu sabia que vocês não cumpririam o prometido e por isso fiquei escondida atrás da árvore. Agora eu não vou mais buscar o abridor, pronto!

        FIM (trinta anos depois).

Millôr Fernandes. Trinta anos de mim mesmo. Rio de Janeiro, Ed. Nórdica, 1974.

Fonte: Gramática da Língua Portuguesa Uso e Abuso. Suzana d’Avila – Volume Único. Editora do Brasil S/A. Ensino de 1º grau. 1997. p. 298.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é a característica principal e incomum da forma como a crônica foi escrita, segundo o próprio narrador?

      A crônica foi escrita "inteiramente em câmera lenta", o que justifica a extrema lentidão dos acontecimentos e diálogos.

02 – Quantas tartarugas estão reunidas à beira da estrada e qual a idade da tartaruga mais velha?

      Estão reunidas cinco tartarugas (três jovens, uma velha e uma pequenina). A tartaruga mais velha tem 1.200 anos.

03 – Qual foi a sugestão inicial da tartaruga mais velha para "quebrar a monotonia" e quanto tempo levou para ela fazer essa sugestão?

      A sugestão foi: "Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia desta vida?". Levou vinte e oito anos depois do começo da história para ela dizer isso.

04 – Após decidirem fazer o piquenique, quanto tempo levou para as tartarugas chegarem ao local "mais ou menos aconselhável"?

      Levou quarenta anos para partirem após a decisão, e mais oitenta anos para chegarem ao local. (Total de 120 anos após a decisão de realizar o piquenique).

05 – Qual foi o objeto crucial que as tartarugas perceberam que faltava para o piquenique e quanto tempo levou para essa percepção?

      Elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas. A percepção ocorreu três anos após terem arrumado tudo para o convescote (piquenique).

06 – Qual foi a promessa que a tartaruguinha menor exigiu para ir buscar o abridor de latas, e quem foi escolhida para a tarefa?

      A tartaruga menor concordou em ir buscar o abridor de latas, mas só se as outras prometessem que não tocariam em nada (pão, doces, etc.) enquanto ela não voltasse. A escolhida foi a tartaruga menor.

07 – O que as tartarugas que ficaram esperando fizeram que quebrou a promessa, e qual foi a revelação da tartaruga menor ao reaparecer?

      As tartarugas que ficaram esperando, depois de um século, resolveram comer os docinhos. A tartaruga menor revelou que sabia que elas não cumpririam o prometido e, por isso, ficou escondida atrás da árvore e, em punição, não iria mais buscar o abridor.

 

sexta-feira, 12 de janeiro de 2024

CRÔNICA: O PRÊMIO - A. ROBERTO M. DE AMORIM - COM GABARITO

 Crônica: O Prêmio

                  A. Roberto M. de Amorim


     O Manoel Antunes veio de Portugal para o Brasil por volta de 1942, quando tinha apenas 12 anos. Com o falecimento de seus pais, três anos depois, teve que combater na arena da vida o ímpeto dos homens-fera, gladiadores sedentos de suor e sangue dos menos favorecidos pela sorte. Precisou passar pelos horrores da fome, pela humilhação dos seus senhores. Conviveu dia a dia com a ameaça de uma deficiência cardíaca congênita, semelhante àquela que lhe roubara o pai.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhPxA3bpeRpXyG7YKp8TAv7LlMkM_ec2tbM3fK2Hxe_GY2ijAoCRNWVo9ppilRURk4VxtmHEUeg0dDkYNwTTs4sE4GbEPucmrq5aaMmt_NcMPksUVan1-JGQhAUmOHSoc2CNhVKgV4Kq3gWh01oOPgzRFWj4tONJ-QE1IQyK2IYl7B_8sETesuw0ouzrCA/s320/Mega-Sena.jpg
  Contudo o Antunes provou ser um forte, vencendo todos os obstáculos com a determinação de quem sabe que a sombra pertence a quem dela toma posse. Aos vinte e cinco anos era já um comerciante bem estabelecido; aos trinta, dono de uma rede de padarias.

     Aos trinta e um anos Antunes se casou com uma moreninha, cor de jambo, vinda do norte, cujo nome era Lúcia. Era perfeita em cada detalhe: não se esquecia nunca da hora dos seus remédios, do horário das refeições em absoluto respeito à dieta; da roupa passada e engomada. Cuidava dele com extremo carinho: não esquecia o beijo de despedida nem o abraço carinhoso da chegada. Talvez o Antunes não tivesse alcançado aqueles cinquenta anos bem vividos, não fosse o zelo de sua companheira.

     Foi em meados de 1980, que ocorreu um episódio singular. O Antunes, como qualquer português que se preze, adorava fazer sua "fezinha" na loteria, mas se dizia um tremendo azarado porque nada ganhava. Já nem conferia mais os resultados. Jogava por hábito.

     Certo dia, porém, Lucinha recebeu um telefonema da Caixa Econômica Federal, comunicando que seu Antunes havia sido o único ganhador de um polpudo prêmio na Loteria Esportiva. Zelosa como era pelo seu esposo, nem mesmo naquele momento Lucinha deixou de se lembrar do delicado estado de saúde dele, razão pela qual solicitou do agente que não divulgasse o nome dele até que ela lhe desse a notícia.

     O prêmio da loteria poderia ser sua definitiva independência financeira, talvez até um tratamento mais especializado no exterior. Mas como dar-lhe a notícia sem o risco de precipitar um desfecho trágico? Mil planos diferentes lhe passaram pela cabecinha até que se lembrou do Dr. Alfredo. Com o passar dos anos ele havia se tornado mais que um médico da família, era um amigo fiel, conselheiro, digno de toda confiança, alguém que, por uma inata capacidade perceptiva aliada a uma consciência humanitária sem igual, conseguia encontrar sempre a solução para os problemas mais difíceis.

     Quando procurado por Lucinha, se dispôs imediatamente a resolver a situação, convocando por telefone a presença de seu marido ao consultório ainda naquela tarde.

     Antunes entrou com uma expressão interrogativa, que questionava sem palavras o porquê daquela chamada súbita. O Dr. Alfredo o acalmou dizendo que o motivo era muito mais seu que propriamente do seu cliente. Começou então uma variada conversa pedindo a ajuda de Antunes para resolução de alguns problemas particulares, escolhendo o momento certo para falar sobre o assunto do prêmio. A oportunidade surgiu quando começaram a falar em dificuldades financeiras. Dr. Alfredo assim se dirigiu ao Antunes:

     - Amigo Antunes, posso lhe fazer uma pergunta assim meio descabida?
     - Ora, pois, meu amigo, mas claro! Vamos lá, diga!
     - Se você ganhasse hoje, sozinho, na Loteria Esportiva, o que você faria com todo aquele dinheiro?
     - Hum!...Queres mesmo saber, meu amigo?...Eu lhe daria a metade!
     O dr. Alfredo teve um enfarte.

Entendendo o texto

01. Numere a segunda coluna de acordo com a primeira, observando o sentido das palavras no texto:
    1- precipitar                          (  3 ) propósito
    2- congênita                         (  2 ) inata
    3- abordar                            (  1 ) apressar
    4- determinação                   (  4 ) impulso
    5- descabida                        (  5 ) imprópria

02. A palavra rede, no texto, tem o sentido de conjunto de estabelecimentos comerciais, mas também pode significar estrutura formada por fios, cordas ou outros materiais entrelaçados.

Escreva uma frase com cada sentido da palavra.
Frase com o primeiro sentido: "Antunes era dono de uma rede de padarias."

Frase com o segundo sentido: "O pescador lançou a rede ao mar."


03. Assinale as palavras que indicam as reações de Antunes diante das adversidades da vida:
    (  X ) obstinação   (    ) revolta    (  X  ) força  (   ) desespero         
    (    ) aceitação    ( X   ) ânimo    (   ) "garra"   (    ) insatisfação

04. Cite três características de cada personagem:
     a) Antunes: Forte, determinado, empreendedor.
    b) Lucinha: Zelosa, cuidadosa, carinhosa.

    c) Dr. Alfredo:  Amigo fiel, conselheiro, perceptivo e humanitário.

05. Transcreva a passagem que comprova que Antunes venceu na vida.
      "Contudo, o Antunes provou ser um forte, vencendo todos os obstáculos com a determinação de quem sabe que a sombra pertence a quem dela toma posse."

06. Qual a importância de Lucinha nos cinquenta anos bem vividos de Antunes?
     Lucinha foi fundamental nos cinquenta anos bem vividos de Antunes, cuidando dele com extremo carinho, zelando por sua saúde, proporcionando-lhe uma vida plena.

07. Qual era o hábito de Antunes?
      O hábito de Antunes era fazer sua "fezinha" na loteria.


08. Por que o autor diz que a notícia do prêmio poderia provocar um desfecho trágico?
      Porque Antunes tinha uma delicada condição cardíaca, e a notícia do prêmio poderia ser chocante a ponto de afetar negativamente sua saúde.


09. É comum os autores usarem comparações para expressarem melhor uma ideia. Transcreva uma comparação usada pelo autor ao se referir à Lucinha.
     Não há uma comparação explícita no texto.

10. O escritor considera singular o episódio da loteria, porque:
    a) Antunes jogava por jogar, pois nem conferia os resultados.
    b) o desfecho foi trágico.
    c) ele foi o único ganhador do prêmio.
    d) o médico propôs dividir o prêmio com Antunes.

11. Identifique a causa e a consequência de cada oração dos períodos:
    a) Lucinha ficou ansiosa porque seu marido era cardíaco.

Causa: "Lucinha ficou ansiosa."

Consequência: "porque seu marido era cardíaco."

    b) Como o valor do prêmio era alto, o dr. Alfredo teve um enfarte.

         Causa: "Como o valor do prêmio era alto.”

         Consequência: "o dr. Alfredo teve um enfarte."


    c)  Antunes ficou preocupado por causa da convocação do médico.

           Causa: "Antunes ficou preocupado."

           Consequência: "por causa da convocação do médico."

12. O tipo de narrador usado no texto é:
    a) narrador-personagem, usa primeira pessoa.
    b) narrador-observador, usa terceira pessoa.
    c) narrador-onisciente, usa terceira pessoa.    

 

 

terça-feira, 14 de maio de 2019

ROMANCE: SÃO BERNARDO (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

Romance: São Bernardo - (fragmento)
                   
                   Graciliano Ramos

        O episódio a ser lido situa-se no final da obra, dois anos após a morte de Madalena. Os amigos deixaram de frequentar a casa. Paulo Honório, concretizando uma antiga ideia de compor um livro com auxílio de pessoas mais entendidas, entrega-se à empreitada de contar a sua história. Após a leitura do fragmento abaixo, responda às questões sobre a obra em questão.
        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? [...]
        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.
        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
         Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    
        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
        A agitação diminui.
        – Estraguei a minha vida estupidamente.
        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos…Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
         A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         
        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     
        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      
        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!
        A desconfiança é também consequência da profissão.
        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.
        A vela está quase a extinguir-se.
        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
        É horrível! Se aparecesse alguém…Estão todos dormindo.
        Se ao menos a criança chorasse…Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!
        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!
        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        Graciliano Ramos (13.ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p.241 e 246-8).
Entendendo o texto:

01 – Dê o significado das palavras a abaixo:
·        Imputar: atribuir.
·        Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.
·        Molecoreba: molecada.
·        Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.
·        Nordeste: vento.

02 – No final da vida, Paulo Honório admite ser e ter sido um homem bruto, egoísta e insensível. E mais: sente-se feio, um aleijado, um monstro. Lembrando-se de Madalena, chega a ferir-se nas mãos e nos lábios.
a)   Identifique, na linguagem do narrador-personagem, traços de sua brutalidade como pessoa.
Expressões como “vomitou dois artigos”; “O Brito... era uma besta”; “molecoreba”.

b)   De acordo com o narrador-personagem, de que provêm essas características?
Da profissão.

c)   Nessa explicação, nota-se a influência de uma corrente científica do século XIX. Qual é ela?
O determinismo.

d)   O que o sentimento de se achar fisicamente monstruoso revela a respeito da condição psicológica e moral de Paulo Honório?
Que ele se sente culpado pela destruição de Madalena e de sua própria vida.

e)   Que tipo de desejo inconsciente é revelado no trecho: “Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue”?
O desejo de autopunição, autoflagelação.

f)    Ao fazer um balanço de seu relacionamento com Madalena, Paulo Honório afirma que, se pudesse recomeçar sua vida com ela, tudo aconteceria de novo. Por que ele pensa assim?
Porque não se sente capaz de mudar.

03 – Segundo o crítico João Luís Lafetá, São Bernardo narra a trajetória de um burguês, Paulo Honório, que passara da condição de caixeiro-viajante e guia de cego à de rico proprietário da Fazenda São Bernardo. Para atingir seus objetivos capitalistas, o protagonista elimina todos os empecilhos que se colocam à sua frente, inclusive pessoas.
a)   Releia este trecho:
“Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar comida para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo?”
Que opinião Paulo Honório tem agora sobre o princípio capitalista da acumulação?
      Chega a consciência de que sua ânsia desenfreada de trabalhar para acumular não levou a nada; está sozinho, quase sem ter a quem deixar sua fortuna, e sua fazenda está em decadência.

b)   Karl Marx já apontava, no século XIX, um fenômeno decorrente das relações do sistema capitalista, a coisificação ou reificação, que consiste na extrema importância que se dá ao valor de troca da mercadoria, e não ao seu valor de uso. No plano das relações humanas, o interesse prevalece sobre sentimentos ou princípios morais, e as pessoas passam a ser vistas como coisas, como objetos. Identifique no texto uma passagem ou situação que evidencie a visão reificada que Paulo Honório tem do mundo.
Em especial a forma como ele se refere aos empregados Mestre Caetano, Rosa e aos filhos desse casal. Ele também reconhece que tratou mal aos outros a fim de alcançar seus objetivos.

04 – Praticamente sozinho, sem Madalena e abandonado por amigos, Paulo Honório consome as horas recordando sua vida e narrando em São Bernardo. Identifique um trecho que comprova ser São Bernardo um livro de recordações.
      Deitar-me, rolar no colchão até de madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. / De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha.

05 – Pelo trecho lido da obra, é possível afirmar que São Bernardo alcança um perfeito equilíbrio entre a análise social e a introspecção psicológica? Justifique.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Sim. Pelo balanço de vida de Paulo Honório e por suas reflexões interiores, nota-se o quanto ele está destruído como pessoa. E as causas disso são sociais: a ideologia capitalista da competição e da acumulação.

06 – São Bernardo assemelha-se, em vários aspectos, a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Veja este trecho do início da obra de Machado, narrado por Bentinho:
        “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice e adolescência. Pois, Senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.
        Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; [...] falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo.”

a)   Em São Bernardo, Paulo Honório, no fim da vida, é a mesma pessoa?
Não. Embora o protagonista não se sinta capaz de mudar, na verdade já mudou: está mais sensível, admite erros e culpas.

b)   Tente explicar os motivos conscientes e inconscientes que teriam levado o protagonista a reconstruir sua própria história.
Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Reconstruir a história pessoal é uma forma de compreende-la melhor e, nela, compreender-se.


quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

ROMANCE: SÃO BERNARDO - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Romance: São Bernardo – Fragmento

                 Graciliano Ramos  

        [...]            

        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhVJVV7zme98JHAPizk1SQpMB4zITRKinlZT2pH2MXYv3QbVl1HRsO-Pm6sqzsveWlyRW3mHI1MRzqyXgvjRZaCq_xt3_e7WGZvBGGEhF7EpZ9fbu9Avb4MF4dTnRicCM1FUwKWVYo0knrzuECdCJAlegYXVkQxO-8zAjtNFzRW4-b3Zei8f1XAFwoXfQM/s320/Sao-bernardo-graciliano-ramos-1-edico.jpg


        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.

        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? 

        [...]

        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.

        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.

        Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    

        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:

        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.

        A agitação diminui.

        – Estraguei a minha vida estupidamente.

        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.

        A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         

        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.

        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     

        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      

        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!

        A desconfiança é também consequência da profissão.

        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.

        A vela está quase a extinguir-se.

        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.

        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.

        É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.

        Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!

        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!

        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        [...]

13. ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p. 241 e 246-8.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 410-411.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

      -- Imputar: atribuir.

      -- Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.

      -- Molecoreba: molecada.

      -- Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.

      -- Nordeste: vento.

02 – Quem é o narrador e protagonista do romance?

      O narrador e protagonista é Paulo Honório, um homem de negócios ambicioso e de origem humilde que enriquece à custa de muito trabalho e de métodos nem sempre éticos.

03 – Qual é o principal tema do romance?

      O principal tema do romance é a trajetória de Paulo Honório, desde a sua ascensão social e econômica até a sua decadência moral e pessoal. A obra também aborda temas como a ambição, o poder, a solidão, o arrependimento e a crítica à sociedade agrária e escravista do início do século XX.

04 – Qual é o papel de Madalena na história?

      Madalena é a professora que se casa com Paulo Honório e que representa a consciência crítica do romance. Ela é uma mulher sensível e idealista que se contrapõe à brutalidade e ao egoísmo do marido.

05 – O que representa a fazenda São Bernardo para Paulo Honório?

      A fazenda São Bernardo representa o símbolo da ascensão social e do poder de Paulo Honório. Ele a adquire com muito esforço e a transforma em um próspero negócio, mas também em um lugar de solidão e de conflitos.

06 – Qual é a relação de Paulo Honório com os outros personagens do romance?

      Paulo Honório mantém relações complexas e ambivalentes com os outros personagens. Ele se mostra um homem frio e calculista, capaz de usar e manipular as pessoas para atingir seus objetivos. Ao mesmo tempo, ele demonstra ter momentos de arrependimento e de fragilidade.

07 – Qual é o papel da linguagem no romance?

      A linguagem de Graciliano Ramos é marcada pela concisão, pela objetividade e pela expressividade. O autor utiliza uma linguagem crua e realista para retratar a vida e os costumes da sociedade sertaneja.

08 – Quais são os principais conflitos enfrentados por Paulo Honório?

      Paulo Honório enfrenta diversos conflitos ao longo do romance. O principal deles é o conflito entre a sua ambição e a sua consciência. Ele também enfrenta conflitos com Madalena, com os outros personagens e com a própria fazenda São Bernardo.

09 – Qual é o desfecho do romance?

      O romance termina com a morte de Paulo Honório, que se isola cada vez mais em sua fazenda e se torna um homem amargurado e solitário. O seu fim trágico é uma reflexão sobre os limites da ambição e do poder.

10 – Qual é a importância de "São Bernardo" na obra de Graciliano Ramos?

      "São Bernardo" é considerado um dos romances mais importantes de Graciliano Ramos e da literatura brasileira. A obra marca uma nova fase na produção do autor, com uma narrativa mais intimista e introspectiva.

11 – Qual é a mensagem principal do romance?

      A mensagem principal do romance é a de que a ambição e o poder podem levar à destruição do ser humano. A história de Paulo Honório é um alerta sobre os perigos do egoísmo, da brutalidade e da falta de consciência.

 

 

segunda-feira, 11 de maio de 2020

ENTREVISTA: O VOVÔ MALUQUINHO - ANDRÉA CAPELATO - COM GABARITO

Entrevista: O vovô maluquinho
                    Andréa Capelato

            O menino maluquinho, a mais conhecida criação de Ziraldo, completa 18 anos e já faz parte do imaginário brasileiro

        Enquanto o Menino Maluquinho atinge a sua maioridade – embora nas páginas do livro continue tendo 11 anos –, seu criador se prepara para comemorar 50 anos de carreira no ano que vem. Também ele, embora já avô de quatro netos, continua na contramão do tempo. Ziraldo Alves Pinto, 65 anos, desenha e escreve um Brasil diferente, que parece sair direto das suas lembranças da infância nos anos 40 no interior de Minas.
        Há inocência, alegria e otimismo de sobra no Brasil de Ziraldo. Seu traço econômico e preciso e suas histórias com enredos sentimentais têm uma rara empatia com a emoção das crianças. A obra do artista resiste à modernidade globalizada e cosmopolita, trazendo ao universo infantil os valores da tradição, da família, do interior. Aquele interior onde aprendeu a ler o mundo. O filho mais velho de dona Zizinha e de seu Geraldo desde cedo foi estimulado a gostar dos livros, que eram seus presentes preferidos. Podia também desenhar onde quisesse, até nas paredes da casa.
        Desde seu primeiro emprego de ajudante de empório, aos nove anos, Ziraldo já fez de tudo: foi aprendiz de tipografia, auxiliar de cartório, bancário, publicitário, redator, funcionário do Ministério da Cultura... Mas o seu destino seria mesmo divertir a criançada. “Sem perceber, acabei me preparando para isso a toda”, afirmou certa vez. Criador de A Turma do Pererê, de Flicts, de O Menino Maluquinho, de Uma Professora Bem Maluquinha e de mais de 60 outros títulos já publicados, Ziraldo é um dos maiores sucessos de literatura infantil desde Monteiro Lobato: mais de três milhões de exemplares vendidos. Na opinião dele, a escola deveria se preocupar mais em ensinar o aluno a gostar da leitura do que em passar os conteúdos curriculares. “Ler é mais importante do que estudar”, não se cansa de repetir.
        Na entrevista a seguir que concedeu a Pais&Teens em maio deste ano, ele fala sobre isso e também sobre a sua visão da adolescência. Aliás, Ziraldo ainda nos deve o Menino Maluquinho adolescente.

        Pais&Teens – Dá para contar um pouco sobre a sua adolescência?

        Ziraldo – Ah, não vou contar não. Ou melhor, deixa eu simplificar. Eu era um menino que gostava de desenhar. A minha lembrança mais antiga sou eu desenhando; deitado no chão e desenhando. Eu era o menino que sabia desenhar, que sabia tudo sobre a guerra, que gostava de ficar na sala ouvindo a conversa dos adultos. E que, logo que aprendeu a ler, não parou mais. Fiz o grupo escolar e o ginásio em Caratinga, no interior de Minas. Depois, vim para o Rio de Janeiro, fui adolescente no Rio com férias em Caratinga para descobrir a alegria que pode te dar o olhar da mulher...

        Pais&Teens – Como chegou à carreira de cartunista? Quando se decidiu por essa vocação?

        Ziraldo – Vim vindo. De pequeno eu já sabia o que queria. É preciso ter vocação e obstinação. Vocação só é pouco. Ah, sim: é bom também ter talento.

        Pais&Teens – Para que público você gosta mais de criar?

        Ziraldo – Eu gosto de desenhar, de ilustrar, de pintar e de escrever. Não necessariamente nesta ordem. Ultimamente ando gostando muito mais de escrever. Mas escrever é mais difícil do que desenhar, muito mais envolvente, muito mais perigoso... Escrever para criança, para quem gosta de carinho, é muito gratificante.
        [...]

        Pais&Teens – Como você vê a questão dos limites e da disciplina para o adolescente de hoje, tanto na família como dentro da escola?

        Ziraldo – Todo mundo precisa de limite. Todo mundo precisa de regra, todo mundo tem de saber que a cada direito corresponde um dever. Não há possibilidade de convivência sem que se observem estes princípios tão politicamente corretos. Quando o adolescente descobre o mundo, ele o descobre por seus próprios instintos. E tem força, sabedoria, talento, disposição, neurônios, razões, energia bastantes para mudar tudo! “Saiam da frente que, finalmente, chegou o que detém a verdade!” De fato, o ser humano nasce criança, vai formando sua personalidade (ou melhor, vai construindo uma personalidade cujo alicerce já está no útero), vai sendo impactado pelo meio onde vive, e aí mergulha na adolescência: o saboroso inferno da existência. E a adolescência é o inferno. Mas o inferno é que é bom – imagine que chatice deve ser o céu! Aquela paz, aquelas pombinhas voando, aquelas flores, aquela brisa, aquela monotonia, aquela Suíça. [...] E aí o adolescente olha os pais, os amigos dos pais, os professores, os adultos à sua volta e descobre que não encontra ali qualquer modelo de futuro que o fascine. Depois, passa. Não tem importância. A vida de adulto não é tão babaca quanto o adolescente pensa que vai ser. Pode ser um grande barato, também. Quando ele emerge da adolescência e entra na idade adulta – o que pode acontecer aos 18 anos, aos 20, ou 25, aos 30, ou nuca – ele descobre que pode ser um adulto tão feliz quanto foi na adolescência, em companhia dos amigos, sem os pais por perto. Mas ele só conseguirá isto se tiver sido uma criança feliz. Está no Menino Maluquinho.

        Pais&Teens – E como seria o Menino Maluquinho na adolescência? A história termina antes...

        Ziraldo – O Menino Maluquinho vai ser um adolescente como quase todos, dono do mundo, consumista, egoísta, perplexo, injustiçado, incompreendido, profundamente infeliz, intensamente feliz, inconstante, desajeitado, mal-amado, bem-amado, indeciso, chato, rimbaudianamente só [referência a Rimbaud, poeta francês que escreveu até os 19 anos]. Ou não.

        Pais&Teens – Você tem manifestado ideias novas sobre as prioridades da Educação. Qual seria o principal papel da escola na formação do adolescente?

        Ziraldo – Outro dia fizeram um fórum aí em São Paulo para saber como se faz um país com a educação. Só se fará um país verdadeiro para o próximo milênio se conseguirmos fazer do Brasil um país de leitores. Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê. Vi isto escrito no prédio de uma velha livraria do Rio, quando era menino; continuamos sendo um país que mal fala, mal ouve, mal vê. Como poderemos escolher um futuro sem dominar o código de compreensão das coisas, que é ler e escrever? [...] A criança tem de ler como quem ouve e escrever como quem fala. Tem de ser capaz de escrever tudo o que pensa e ler tudo o que lhe dizem. O resto vem por acréscimo. Atenção: a escola tem de ensinar a gostar de ler!
                                                   Pais&Teens, jul. 1998.
Fonte: Livro – Ler, entender, criar – Português – 6ª Série – Ed. Ática, 2007 – p. 154-9.

Entendendo a entrevista:

01 – Releia: “Enquanto o Menino Maluquinho atinge a sua maioridade – embora nas páginas do livro continue tendo 11 anos [...]”.
a)   O que significa alguém atingir a maioridade?
Completar 18 anos.

b)   O Menino Maluquinho atingiu a maioridade, mas nas páginas do livro continua tendo 11 anos. Como se explica isso?
É porque a história O Menino Maluquinho já existe a mais de dezoito anos.

02 – Na época em que a entrevista foi publicada, quem se preparava para completar cinquenta anos de carreira no ano seguinte?
      Ziraldo, o criador da personagem.

03 – Quem é o vovô maluquinho a que o título do texto se refere? Que trecho permite concluir isso?
      O próprio Ziraldo. “Também ele, embora já avô de quatro netos, continua na contramão do tempo.

04 – Reúna-se com um colega e releiam este trecho: “Seu traço econômico e preciso e suas histórias com enredos sentimentais têm uma rara empatia com a emoção das crianças”.
O que vocês entendem por “traço econômico”? Para responder, observem a figura do Menino Maluquinho, prestando atenção na forma como é desenhado.
      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: A expressão se refere ao traçado simples e sem excesso de detalhes de Ziraldo, que consegue representar as figuras e as cenas utilizando o mínimo de linhas.

05 – Leia:
“Fiz o grupo escolar e o ginásio em Caratinga, no interior de Minas. Depois, vim para o Rio de Janeiro [...]”
“Outro dia fizeram um fórum aí em São Paulo para saber como se faz um país com a educação.”
Com base nas informações contidas nesse trechos, responda:
a)   Onde Ziraldo se encontrava quando deu a entrevista? Que trecho permite chegar a essa conclusão?
No Rio de Janeiro. “[...] vim para o Rio de Janeiro [...]”.

b)   Por que Ziraldo diz “aí em São Paulo”? Quem, provavelmente, se encontrava em São Paulo?
Pode-se deduzir que a entrevistadora se encontrava em São Paulo no momento da entrevista.

06 – Releia um trecho da resposta de Ziraldo à quarta pergunta: “Saiam da frente que, finalmente, chegou o que detém a verdade!”
a)   Quem, de acordo com a visão de Ziraldo, acredita deter a verdade?
O adolescente.

b)   Você concorda com a visão de Ziraldo sobre o adolescente?
Resposta pessoal do aluno.

07 – Em duas das perguntas a entrevistadora associou o tema da adolescência à escola. Por quê?
      Porque o espaço escolar está – ou deveria estar – muito presente na vida do adolescente. Muitos das questões vividas pelos adolescentes relacionam-se com a vida na escola.

08 – Na opinião de Ziraldo, “ler é mais importante do que estudar” e a principal preocupação da escola deveria ser ensinar o aluno a gostar de ler. Converse com seus colegas: vocês concordam com Ziraldo? É possível ensinar a gostar de uma coisa (de ler, neste caso)?
      Resposta pessoal do aluno.

09 – Esse texto foi tirado de uma revista chamada Pais&Teens. O que significa a palavra teen (se não souber, consulte um dicionário de inglês)? A quem, provavelmente, se dirige essa revista?
      Teen significa “adolescente”.

10 – O texto “O Vovô Maluquinho” pode ser dividido em duas partes. Quais são elas?
      Apresentação do entrevistado e entrevista.

11 – Esse texto também poderia ser observado em relação à linguagem empregada, pois há trechos com linguagem mais formal – mais próxima da norma-padrão – e trechos com linguagem mais informal.
a)   Que trechos apresentam uma linguagem mais próxima da norma-padrão? Cite pelo menos uma frase que comprove sua afirmação.
A apresentação e as perguntas. “A obra do artista resiste à modernidade globalizada e cosmopolita, trazendo ao universo infantil os valores da tradição, da família, do interior”.

b)   Que trechos trazem marcas da oralidade, isto é, expressões e construções próprias da linguagem oral? Cite pelo menos um trecho que comprove essa afirmação.
Essas marcas se encontram principalmente nas respostas de Ziraldo, dando a impressão ao leitor de o estar ouvindo falar. “Ah, não vou contar não”, “Vim vindo. De pequeno eu já sabia [...]”, “A vida de adulto não é tão babaca quanto o adolescente pensa [...]”, “Pode ser um grande barato [...]”.