Crônica: Além do possível
Ferreira Gullar
Coisa fácil é julgar os outros e
difícil é compreendê-los. Já afirmei, aqui, que quem admite a complexidade da
realidade não pode ser radical nem sectário, pela simples razão de que, se os
problemas são complexos, não serão resolvidos de uma penada. Alias, toda vez
que se tenta fazê-lo, o desastre é inevitável. Mas a tendência mais comum é
acreditar nas soluções milagrosas, mesmo porque aceitar que as coisas são
complicadas custa muito, a não ser se se trata de nós mesmos. Claro, quando
alguém nos acusa de ter agido mal, nossa resposta é sempre que não deu pra
fazer melhor. “As coisas são complicadas”, a gente argumenta. E são mesmo, mas
para os outros também.

Essas considerações vêm a propósito de
uma conversa que tive com uma amiga muito querida, que vive sonhando. Devo
esclarecer que nasci sob o signo de Virgo e sou, portanto, segundo a discutível
astrologia, um tipo da terra, que vive pesando e medindo tudo, sem tirar os pés
do chão. Tanto isso é verdade que muito raramente escrevo poesia, uma vez que a
poesia nos obriga a voar. Essa é a razão por que, quando me perguntam se eu sou
o poeta Ferreira Gullar, eu respondo: “Às vezes”. Dá então para entender a
dificuldade que tenho de discutir certas coisas com uma pessoa do signo de
Balança, por exemplo. Essa minha amiga é de Balança, isto é, não só hesita,
sobe e desce, como flutua o tempo todo. E por isso, apesar do carinho que nos
une, frequentemente nos desentendemos.
-- Mas você não vê que isso é loucura,
menina?
-- Loucura? Só porque desejo ir pro
deserto de Atacama catar múmia?
-- Não sabia que você virou arqueóloga!
-- E precisa ser arqueóloga pra ir catar
múmia em Atacama?
-- Precisa, sim. Mesmo porque aquilo
deve ser um campo arqueológico, supervisionado pelo governo chileno. Não pode
qualquer pessoa chegar lá e começar a cavucar.
-- Você é um chato, ouviu! É por isso
que não suporto os virginianos!
-- Você não suporta é a realidade, meu
amor!
Pedi a conta e saímos amuados do
restaurante. Ao chegar em casa, refleti.
-- Que diabo tenho eu que ficar botando
areia no sonho dos outros?
E, como bom virginiano, aleguei que só
falara aquilo temendo que ela entrasse numa fria, se tocasse para o deserto de
Atacama e desse com os burros n’água.
No dia seguinte, liguei para ela e me
desculpei, expliquei-lhe que minha intenção era apenas alertá-la.
-- E você pensa que eu sou maluca? Acha
que eu ia mesmo me tocar para Atacama semana que vem?
-- Temia que...
-- O que você não entende é que tenho
necessidade de sonhar, de imaginar coisas maravilhosas. Se as levarei à prática
ou não, é secundário. Às vezes levo, como a viagem que fiz ao Himalaia e a
outra, a Machu Picchu. Sei muito bem que fazer é mais difícil que sonhar, e por
isso mesmo é que eu sonho.
Caí em mim. Lembrei-me de uma coisa que
sei e de que às vezes me esqueço: a vida não é só o possível. Sem o impossível,
não se vai muito além da próxima esquina.
Ferreira Gullar. Além
do possível. Em: Ferreira Gullar: crônicas para jovens. São Paulo: Global,
2011. p. 108-109 (Coleção Crônicas para jovens).
Fonte: Universos –
Língua Portuguesa – Ensino fundamental – Anos finais – 9º ano – Camila Sequetto
Pereira; Fernanda Pinheiro Barros; Luciana Mariz. Edições SM. São Paulo. 3ª
edição, 2015. p. 80-81.
Entendendo a crônica:
01 – Qual a principal
diferença de personalidade e visão de mundo entre o narrador e sua amiga,
segundo o texto?
O narrador, um
virginiano, é pragmático e realista, "pesando e medindo tudo" e
mantendo os "pés no chão". Ele foca no que é possível e concreto. Sua
amiga, uma libriana, é sonhadora e flutuante. Ela tem a necessidade de imaginar
coisas e idealizar, mesmo que não as realize de fato. Essa diferença de
temperamentos é a causa de seus desentendimentos.
02 – Por que o narrador se
identifica como poeta "às vezes"?
Ele afirma que nasceu sob o signo de
Virgem e se considera um tipo da terra, o que contrasta com a natureza da
poesia, que exige "voar", ou seja, imaginar e sair da realidade
concreta. Por isso, ele se vê como poeta apenas em momentos específicos, quando
consegue se desprender de seu lado racional e pragmático para criar.
03 – Qual o motivo do
desentendimento entre o narrador e sua amiga durante a conversa no restaurante?
A amiga,
sonhadora, expressa o desejo de ir ao deserto de Atacama catar múmias, uma
ideia que o narrador considera "loucura" e irrealista. Ele, com sua
visão pragmática, aponta as dificuldades práticas (a necessidade de ser
arqueólogo, a supervisão governamental, etc.), enquanto ela enxerga a ideia
como um simples sonho.
04 – Após a discussão, qual
foi a reflexão do narrador?
Depois de se
desentender com a amiga, o narrador reflete sobre sua atitude e se questiona:
"Que diabo tenho eu que ficar botando areia no sonho dos outros?".
Ele percebe que sua tentativa de ser realista e alertá-la sobre os perigos foi,
na verdade, uma intromissão desnecessária em algo que era apenas um sonho.
05 – Qual a principal lição
que o narrador aprende com a amiga no final da crônica?
A amiga explica que a necessidade de
sonhar é essencial, e que a realização ou não do sonho é algo secundário. A
partir disso, o narrador compreende que a vida não se resume apenas ao
"possível" e que sem o "impossível" — ou seja, sem a
capacidade de sonhar e idealizar — a vida se torna limitada e sem grandes
avanços.
06 – Como a crônica "Além do Possível" trata a
ideia de julgamento e compreensão?
O texto começa
afirmando que "coisa fácil é julgar os outros e difícil é
compreendê-los". O narrador, ao longo da narrativa, exemplifica essa
ideia. Inicialmente, ele julga o sonho da amiga como loucura, sem tentar
entender a sua real importância para ela. Ao final, ele a compreende e se
desculpa, percebendo que sua visão pragmática o impediu de enxergar o valor do
"impossível".
07 – Qual o significado da
última frase da crônica: "a vida não é só o possível. Sem o impossível,
não se vai muito além da próxima esquina"?
Essa frase
sintetiza o aprendizado do narrador. Ela significa que a realidade concreta e
pragmática (o possível) é apenas uma parte da vida. Para que haja progresso,
inovação e até mesmo um sentido maior, é preciso sonhar, ter aspirações e
idealizar (o impossível). Ficar preso apenas ao que é viável impede a pessoa de
ir longe, de se aventurar e de transcender a rotina.