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sexta-feira, 17 de outubro de 2025

CRÔNICA: O ABRIDOR DE LATAS - MILLÔR FERNANDES - COM GABARITO

 Crônica: O abridor de latas

             Millôr Fernandes

        Pela primeira vez, no Brasil, um conto escrito inteiramente em câmera lenta.

        Quando esta história se inicia, já se passaram quinhentos anos, tal a lentidão com que ela é narrada. Estão sentadas à beira de uma estrada três tartarugas jovens, com 800 anos cada uma, uma tartaruga velha com 1.200 anos, e uma tartaruga bem pequenininha, com apenas 85 anos. As cinco tartarugas estão sentadas, dizia eu. E dizia-o muito bem pois elas estão sentadas mesmo. Vinte e oito anos depois do começo desta história a tartaruga mais velha abriu a boca e disse:

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiUC6Fih72nUaIBr1ficJzw2USrlNehy0obl3ZHghpM8JN7lyDR_fexIJMdP-DEoqQWUbt7iZth4v7CG1DzCmTjuKNfbiUEltFeH5vRnsEHUv1fSGdJZ41DCjyj1M9U-KXiRx_atvkNom4qCiGRwLoBx7uu6ZZCwFqmIuhdSJQawlDNl6vubrQMev153iU/s1600/TARTARUGAS.jpg


        — Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia desta vida?

        — Formidável! — disse a tartaruguinha mais nova, doze anos depois. — Vamos fazer um piquenique?

        Vinte e cinco anos depois, as tartarugas se decidiram a realizar o piquenique. Quarenta anos depois, tendo comprado algumas dezenas de latas de sardinhas e várias dúzias de refrigerantes, elas partiram. Oitenta anos depois, chegaram a um lugar mais ou menos aconselhável para um piquenique.

        — Ah — disse a tartaruguinha, oito anos depois —, excelente local este!

        Sete anos depois todas as tartarugas tinham concordado. Quinze anos se passaram e, rapidamente, elas tinham arrumado tudo para o convescote. Mas, súbito, três anos depois, elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas.

        Discutiram e, ao fim de vinte anos, chegaram à conclusão de que a tartaruga menor devia ir buscar o abridor de latas.

        — Está bem — concordou a tartaruguinha três anos depois —, mas só vou se vocês prometerem que não tocam em nada enquanto eu não voltar.

        Dois anos depois as tartarugas concordaram imediatamente que não tocariam em nada, nem no pão nem nos doces. E a tartaruguinha partiu.

        Passaram-se cinquenta anos e a tartaruga não apareceu. As outras continuavam esperando. Mais dezessete anos e nada. Mais oito anos e nada ainda. Afinal uma das tartarugas murmurou:

        — Ela está demorando muito. Vamos comer alguma coisa enquanto ela não vem?

        As outras não concordaram, rapidamente, dois anos depois. E esperaram mais dezessete anos. Aí outra tartaruga disse:

        — Já estou com muita fome. Vamos comer só um pedacinho de doce que ela nem notará.

        As outras tartarugas hesitaram um pouco mas, quinze anos depois, acharam que deveriam esperar pela outra. E se passou mais um século nessa espera. Afinal a tartaruga mais velha não pôde mesmo e disse:

        — Ora, vamos comer mesmo só uns docinhos enquanto ela não vem.

        Como um raio as tartarugas caíram sobre os doces seis meses depois. E justamente quando iam morder o doce ouviram um barulho no mato por detrás delas e a tartaruga mais jovem apareceu:

        — Ah — murmurou ela —, eu sabia, eu sabia que vocês não cumpririam o prometido e por isso fiquei escondida atrás da árvore. Agora eu não vou mais buscar o abridor, pronto!

        FIM (trinta anos depois).

Millôr Fernandes. Trinta anos de mim mesmo. Rio de Janeiro, Ed. Nórdica, 1974.

Fonte: Gramática da Língua Portuguesa Uso e Abuso. Suzana d’Avila – Volume Único. Editora do Brasil S/A. Ensino de 1º grau. 1997. p. 298.

Entendendo a crônica:

01 – Qual é a característica principal e incomum da forma como a crônica foi escrita, segundo o próprio narrador?

      A crônica foi escrita "inteiramente em câmera lenta", o que justifica a extrema lentidão dos acontecimentos e diálogos.

02 – Quantas tartarugas estão reunidas à beira da estrada e qual a idade da tartaruga mais velha?

      Estão reunidas cinco tartarugas (três jovens, uma velha e uma pequenina). A tartaruga mais velha tem 1.200 anos.

03 – Qual foi a sugestão inicial da tartaruga mais velha para "quebrar a monotonia" e quanto tempo levou para ela fazer essa sugestão?

      A sugestão foi: "Que tal se fizéssemos alguma coisa para quebrar a monotonia desta vida?". Levou vinte e oito anos depois do começo da história para ela dizer isso.

04 – Após decidirem fazer o piquenique, quanto tempo levou para as tartarugas chegarem ao local "mais ou menos aconselhável"?

      Levou quarenta anos para partirem após a decisão, e mais oitenta anos para chegarem ao local. (Total de 120 anos após a decisão de realizar o piquenique).

05 – Qual foi o objeto crucial que as tartarugas perceberam que faltava para o piquenique e quanto tempo levou para essa percepção?

      Elas perceberam que faltava o abridor de latas para as sardinhas. A percepção ocorreu três anos após terem arrumado tudo para o convescote (piquenique).

06 – Qual foi a promessa que a tartaruguinha menor exigiu para ir buscar o abridor de latas, e quem foi escolhida para a tarefa?

      A tartaruga menor concordou em ir buscar o abridor de latas, mas só se as outras prometessem que não tocariam em nada (pão, doces, etc.) enquanto ela não voltasse. A escolhida foi a tartaruga menor.

07 – O que as tartarugas que ficaram esperando fizeram que quebrou a promessa, e qual foi a revelação da tartaruga menor ao reaparecer?

      As tartarugas que ficaram esperando, depois de um século, resolveram comer os docinhos. A tartaruga menor revelou que sabia que elas não cumpririam o prometido e, por isso, ficou escondida atrás da árvore e, em punição, não iria mais buscar o abridor.

 

quinta-feira, 14 de agosto de 2025

CONTO: UMA NOITE NO PARAÍSO - ÍTALO CALVINO - COM GABARITO

 Conto: Uma noite no paraíso

           Ítalo Calvino

        Era uma vez dois grandes amigos que, de tanto que se queriam, haviam feito um juramento: quem casasse primeiro deveria chamar o outro para padrinho, mesmo que se encontrasse no fim do mundo.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhr4GrTRifFg4bQZIOIo2pQ1K3yVs5gl9LtcvjqHz0zfAiHiloNvvDKax781k_-HJXy5NR9ayM-SlNADUUHUi5aVCUpauH7Ct7_HyXJdJtOL0E1olsZYznTDTvjg_4KNxfDOue2kTJwOxNz-RGxJa_tmMpY_cBLkv-f9EGcToMH0jCs5mEVRNHQLlFkrJs/s320/11536670-1618622857663-5fb9555fc4aca.jpg


        Depois de algum tempo, um dos amigos morre. O outro, devendo casar, não sabia como fazer e pediu conselhos ao confessor.

        — Negócio complicado — disse o pároco —, você deve manter a sua palavra. Convide-o mesmo estando morto. Vá até o túmulo e diga o que tem a dizer. Ele decidirá se vem ou não.

        O jovem foi até o túmulo e disse:

        — Amigo, chegou o momento, vem para ser meu padrinho!

        Abriu-se a terra e pulou fora o amigo.

        — Claro que vou, tenho que manter a promessa, pois se não a mantiver não sei quanto tempo terei que ficar no purgatório.

        Vão para casa e depois à igreja para o matrimônio. A seguir veio o banquete de núpcias e o jovem morto começou a contar histórias de todo tipo, mas não dizia uma palavra sobre o que vira no outro mundo. O noivo não via a hora de lhe fazer umas perguntas, mas não tomava coragem. No final do banquete, o morto se levanta e diz:

        — Amigo, já que lhe fiz este favor, você tem que me acompanhar um pouquinho.

        — Claro, por que não? Porém, espere, só um momentinho, pois é a primeira noite com minha esposa…

        — Certamente, como quiser!

        O marido deu um beijo na mulher.

        — Vou sair um instante e volto logo. — E saiu com o morto.

        Falando de tudo um pouco, chegaram ao túmulo. Abraçaram-se.

        O vivo pensou: "Se não lhe perguntar agora, não pergunto nunca mais", tomou coragem e lhe disse:

        — Escute, queria lhe perguntar uma coisa, a você que está morto: do outro lado, como funciona?

        — Não posso dizer nada — respondeu o morto. — Se quiser saber, venha você também ao Paraíso.

        O túmulo se abriu, e o vivo seguiu o morto. E logo se encontravam no Paraíso. O morto o levou para ver um belo palácio de cristal com portas de ouro, cheio de anjos que tocavam e faziam dançar os beatos, e são Pedro, que tocava contrabaixo. O vivo estava de boca aberta e quem sabe quanto tempo teria ficado ali se não tivesse de ver todo o resto.

        — Agora, vamos a outro lugar! — disse-lhe o morto, e o levou a um jardim onde as árvores, em vez de folhas, tinham pássaros de todas as cores que cantavam. — Vamos em frente, o que faz aí encantado? — E o levou a um prado onde os anjos dançavam, alegres e suaves como namorados. — Agora vou levá-lo para ver uma estrela!

        Não se cansaria nunca de admirar as estrelas; os rios, em vez de água, eram de vinho e a terra era de queijo.

        De repente, caiu em si:

        — Ouça, compadre, já faz algumas horas que estou aqui em cima. Tenho que voltar para minha esposa, que deve estar preocupada.

        — Já está cansado?

        — Cansado? Sim, se pudesse…

        — E muito mais haveria para descobrir!

        — Tenho certeza, mas é melhor eu voltar.

        — Como preferir. — E o morto o acompanhou até o túmulo e depois sumiu.

        O vivo saiu do túmulo e não reconhecia mais o cemitério. Estava todo cheio de monumentos, estátuas, árvores altas. Sai do cemitério e, no lugar daquelas casinhas de pedra meio improvisadas, vê grandes palácios e bondes, automóveis, aviões. "Onde é que vim parar? Terei errado o caminho? Mas como está vestida esta gente!"

        Pergunta a um velhinho:

        — Cavalheiro, esta aldeia é…?

        Sim, é esse o nome desta cidade.

        — Bem, não sei por que, não consigo me situar. Saberia me dizer onde fica a casa daquele que se casou ontem?

        — Ontem? Estranho, trabalho como sacristão e posso garantir que ontem ninguém se casou!

        — Como? Eu me casei! — E lhe contou que acompanhara ao Paraíso um padrinho seu que morrera.

        — Você está sonhando — disse o velho. — Essa é uma velha história que contam: do marido que acompanhou o padrinho até o túmulo e não voltou; e a mulher morreu de desgosto.

        — Não, senhor, o marido sou eu!

        — Ouça, a única solução é que vá conversar com nosso bispo.

        — Bispo? Mas aqui na aldeia só existe um pároco.

        — Nada disso. Há muitos anos que temos um bispo. — E o levou até o bispo.

        O bispo, quando o jovem lhe contou o que lhe acontecera, lembrou-se de uma história que ouvira quando rapaz. Pegou os livros, começou a folheá-los: há trinta anos, não; cinquenta anos, não; cem, não; duzentos, não. E continuava a folhear. No final, numa folha toda rasgada e gordurosa, encontra justamente aqueles nomes.

        Aconteceu há trezentos anos. O jovem desapareceu no cemitério e a mulher dele morreu de desgosto. Leia aqui se não acredita!

        — Mas sou eu.

        — E você esteve no outro mundo? Conte-me como é!

        Porém, o jovem ficou amarelo como a morte e caiu. Morreu assim, sem poder contar nada do que vira.

Extraído de: Ítalo Calvino. Fábulas italianas. Tradução: Nilson Maulin, São Paulo, Companhia das Letras.

Fonte: Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Coletânea de textos – Módulo 1. p. 290-292.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o juramento feito pelos dois amigos no início do conto, e qual sua importância para a trama?

      O juramento feito pelos dois amigos é que quem casasse primeiro deveria chamar o outro para padrinho, mesmo que estivesse no "fim do mundo". Este juramento é o motor de toda a trama, pois é ele que força o amigo vivo a convidar o amigo morto, desencadeando todos os eventos sobrenaturais e a jornada para o Paraíso.

02 – Como o amigo morto descreve sua razão para aceitar o convite para ser padrinho?

      O amigo morto afirma que precisa manter a promessa para não ter que ficar mais tempo no purgatório. Ele diz: "Claro que vou, tenho que manter a promessa, pois se não a mantiver não sei quanto tempo terei que ficar no purgatório." Isso adiciona uma camada de urgência e um toque de humor irônico à sua aparição.

03 – Por que o amigo morto se recusa a descrever o "outro lado" durante o banquete de núpcias?

      Durante o banquete, o amigo morto conta "histórias de todo tipo, mas não dizia uma palavra sobre o que vira no outro mundo". Ele se recusa a descrever o "outro lado" porque a condição para o vivo saber é ir ele mesmo ao Paraíso. Ele só revela a natureza do Paraíso ao vivo quando o leva para lá.

04 – Quais são as características do Paraíso descritas pelo amigo morto ao amigo vivo?

      O Paraíso é descrito com elementos maravilhosos e fantásticos: um "belo palácio de cristal com portas de ouro" e anjos tocando e fazendo os beatos dançar, com São Pedro tocando contrabaixo. Além disso, há um jardim com árvores que, em vez de folhas, tinham pássaros de todas as cores que cantavam, um prado com anjos dançando "alegres e suaves como namorados", e estrelas para admirar. Os rios eram "de vinho e a terra era de queijo".

05 – Qual é o principal problema que o amigo vivo enfrenta ao retornar do Paraíso?

      O principal problema que o amigo vivo enfrenta ao retornar é a passagem exorbitante do tempo sem que ele perceba. Ele pensa que esteve fora por "algumas horas", mas ao sair do túmulo, percebe que a cidade mudou drasticamente. Ele não reconhece mais o cemitério, a arquitetura, os meios de transporte, e descobre que se passaram trezentos anos desde que saiu de casa.

06 – Como o conto explora a ideia da relatividade do tempo?

      O conto explora a relatividade do tempo de forma central. Para o amigo vivo, o tempo no Paraíso parece passar muito rápido, apenas "algumas horas", mas ao retornar ao mundo dos vivos, ele descobre que trezentos anos se passaram. Isso demonstra como a percepção do tempo pode ser alterada em diferentes realidades ou dimensões, e como o que é um breve instante em um lugar pode ser um vasto período em outro.

07 – Qual é o desfecho trágico do amigo vivo e o que isso simboliza?

      O desfecho trágico do amigo vivo é que, após descobrir que trezentos anos se passaram e que sua esposa já morrera de desgosto, ele morre subitamente, sem conseguir contar nada do que vira no Paraíso. Isso simboliza a impossibilidade de transpor completamente a experiência do sobrenatural para o mundo mortal. O conhecimento do Paraíso é tão avassalador e incompatível com a vida terrena que a tentativa de recontá-lo ou de conciliar essas realidades é fatal, mantendo o mistério do além-vida.

 

terça-feira, 18 de março de 2025

RELATO PESSOAL: NAS RUAS DO BRÁS - FRAGMENTO - DRAUZIO VARELLA - COM GABARITO

 Relato pessoal: Nas ruas do Brás – Fragmento

            Drauzio Varella

        [...]       

        Aos domingos, folga de meu pai, pegávamos o bonde para visitar a tia Olímpia, irmã e confidente de minha mãe, em Santana. A tia morava com o marido e dois filhos numa chácara cercada de ciprestes, na rua Voluntários da Pátria, quase em frente á Caixa d’Água, perto da Padaria Morávia. Naquela região, havia muitas chácaras; produziam hortaliças que eram transportadas de carroça para as quitandas ou anunciadas aos gritos de porta em porta.

Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjDPEZghQTQ5dl_Dt6exfAKoWqf0w4FHDX5J2kHLmXIuVXXD3ftxaqSWaWE4XDS4LlLaQc2uWRevuhjIvhbnVb1MOkEwG37VtZtiSIDa7IBYhMxJFORp6tPtzPXI7wH5QJxsg12wOAlNLP_6dCD1JJN37UJ0CjbfOT-M3PAzpjsBusX3Ni03VnMZKE7Nqw/s320/RUA.jpg


        No começo da Voluntários da Pátria acabava o calçamento. Ali, junto à Padaria Polar, onde hoje há uma agência bancária, existia um bebedouro redondo, de bronze, com água para os cavalos que chegavam à cidade pela Zona Norte, depois de descerem a serra da Cantareira. Hoje, quem vê o bairro de Santana com a Caixa d’Água custa a acreditar que menos de cinquenta anos atrás existiam chácaras ali.

        Nessas reuniões familiares, eu encontrava meus primos queridos: dois filhos dessa tia e três do tio José, irmão mais velho da minha mãe. Sujos de terra, em bando pelos quatro cantos da chácara, trepávamos nas árvores, dávamos comida para os patos no laguinho, cortávamos capim-gordura para o Gualicho, o cavalo que puxava a charrete do meu tio, e jogávamos bola em gol de verdade, com trave de bambu do taquaral.

        Quando chegava a hora de ir embora, meus primos e eu chantageávamos minha mãe. para que ela me deixasse ficar lá até o domingo seguinte. Devíamos insistir tanto que às vezes eu acabava conseguindo. Era o máximo da felicidade.

        [...]

Drauzio Varella. Os balões. In: ______. Nas ruas do Brás. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2000. p. 34-35. (Memória e História).

Fonte: Português. Vontade de Saber. 6º ano – Rosemeire Alves / Tatiane Brugnerotto – 1ª edição – São Paulo – 2012. FTD. p. 189.

Entendendo o relato:

01 – Qual era o destino da família aos domingos?

      A família pegava o bonde para visitar a tia Olímpia em Santana.

02 – Onde ficava a chácara da tia Olímpia?

      A chácara ficava na rua Voluntários da Pátria, perto da Caixa d’Água e da Padaria Morávia.

03 – Como era a região de Santana naquela época?

      A região era repleta de chácaras que produziam hortaliças, transportadas por carroça para as quitandas.

04 – O que havia no começo da rua Voluntários da Pátria?

      No começo da rua, havia um bebedouro de bronze para os cavalos que vinham da Zona Norte.

05 – Quais atividades o autor e seus primos faziam na chácara?

      Eles brincavam na terra, subiam em árvores, alimentavam patos, cortavam capim para o cavalo e jogavam bola.

06 – O que o autor e seus primos faziam antes de ir embora?

      Eles chantageavam a mãe do autor para que ele pudesse ficar na chácara até o domingo seguinte.

07 – Qual era o sentimento do autor em relação aos domingos na chácara?

      Era o máximo da felicidade para o autor.

 

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

ROMANCE: SÃO BERNARDO - (FRAGMENTO) - GRACILIANO RAMOS - COM GABARITO

 Romance: São Bernardo – Fragmento

                 Graciliano Ramos  

        [...]            

        “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.

 Fonte:https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhVJVV7zme98JHAPizk1SQpMB4zITRKinlZT2pH2MXYv3QbVl1HRsO-Pm6sqzsveWlyRW3mHI1MRzqyXgvjRZaCq_xt3_e7WGZvBGGEhF7EpZ9fbu9Avb4MF4dTnRicCM1FUwKWVYo0knrzuECdCJAlegYXVkQxO-8zAjtNFzRW4-b3Zei8f1XAFwoXfQM/s320/Sao-bernardo-graciliano-ramos-1-edico.jpg


        O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinquenta anos perdidos, cinquenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.

        Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? 

        [...]

        As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.

        Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.

        Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    

        De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:

        – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.

        A agitação diminui.

        – Estraguei a minha vida estupidamente.

        Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos... Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.

        A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         

        Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.

        Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     

        Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      

        E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte!

        A desconfiança é também consequência da profissão.

        Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.

        Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.

        Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas.

        A vela está quase a extinguir-se.

        Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.

        Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.

        É horrível! Se aparecesse alguém... Estão todos dormindo.

        Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!

        Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!

        E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

        [...]

13. ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p. 241 e 246-8.

Fonte: Livro – Português: Linguagens, Vol. Único. William Roberto Cereja, Thereza Cochar Magalhães. Ensino Médio, 1ª ed. 4ª reimpressão – São Paulo: ed. Atual, 2003. p. 410-411.

Entendendo o romance:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

      -- Imputar: atribuir.

      -- Diligenciar: esforçar-se, empenhar-se.

      -- Molecoreba: molecada.

      -- Cambembe: desajeitado, desastrado, sem importância.

      -- Nordeste: vento.

02 – Quem é o narrador e protagonista do romance?

      O narrador e protagonista é Paulo Honório, um homem de negócios ambicioso e de origem humilde que enriquece à custa de muito trabalho e de métodos nem sempre éticos.

03 – Qual é o principal tema do romance?

      O principal tema do romance é a trajetória de Paulo Honório, desde a sua ascensão social e econômica até a sua decadência moral e pessoal. A obra também aborda temas como a ambição, o poder, a solidão, o arrependimento e a crítica à sociedade agrária e escravista do início do século XX.

04 – Qual é o papel de Madalena na história?

      Madalena é a professora que se casa com Paulo Honório e que representa a consciência crítica do romance. Ela é uma mulher sensível e idealista que se contrapõe à brutalidade e ao egoísmo do marido.

05 – O que representa a fazenda São Bernardo para Paulo Honório?

      A fazenda São Bernardo representa o símbolo da ascensão social e do poder de Paulo Honório. Ele a adquire com muito esforço e a transforma em um próspero negócio, mas também em um lugar de solidão e de conflitos.

06 – Qual é a relação de Paulo Honório com os outros personagens do romance?

      Paulo Honório mantém relações complexas e ambivalentes com os outros personagens. Ele se mostra um homem frio e calculista, capaz de usar e manipular as pessoas para atingir seus objetivos. Ao mesmo tempo, ele demonstra ter momentos de arrependimento e de fragilidade.

07 – Qual é o papel da linguagem no romance?

      A linguagem de Graciliano Ramos é marcada pela concisão, pela objetividade e pela expressividade. O autor utiliza uma linguagem crua e realista para retratar a vida e os costumes da sociedade sertaneja.

08 – Quais são os principais conflitos enfrentados por Paulo Honório?

      Paulo Honório enfrenta diversos conflitos ao longo do romance. O principal deles é o conflito entre a sua ambição e a sua consciência. Ele também enfrenta conflitos com Madalena, com os outros personagens e com a própria fazenda São Bernardo.

09 – Qual é o desfecho do romance?

      O romance termina com a morte de Paulo Honório, que se isola cada vez mais em sua fazenda e se torna um homem amargurado e solitário. O seu fim trágico é uma reflexão sobre os limites da ambição e do poder.

10 – Qual é a importância de "São Bernardo" na obra de Graciliano Ramos?

      "São Bernardo" é considerado um dos romances mais importantes de Graciliano Ramos e da literatura brasileira. A obra marca uma nova fase na produção do autor, com uma narrativa mais intimista e introspectiva.

11 – Qual é a mensagem principal do romance?

      A mensagem principal do romance é a de que a ambição e o poder podem levar à destruição do ser humano. A história de Paulo Honório é um alerta sobre os perigos do egoísmo, da brutalidade e da falta de consciência.

 

 

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

CONTO: A DEMANDA DO SANTO GRAAL - II - NA CORTE DO REI ARTUR - (FRAGMENTO) - HEITOR MEGALE - COM GABARITO

 Conto: A DEMANDA DO SANTO GRAALII – Na corte do rei Artur – Fragmento

        [...]

        Como Lancelote e Boorz e Leonel chegaram à corte. Assim falando, chegaram a Camalote, e sabei que quantos na corte estavam ficaram com isso muito alegres, porque muito seria a festa menor e mais pobre, se eles nela não estivessem. O rei foi então ouvir missa na Sé em companhia de tantos cavaleiros que ficaríeis maravilhado de os ver. E ele trajava tão rica vestimenta que maravilha era. E com a rainha iam tantas donas e donzelas, que era grande maravilha. E ela e eles ouviram missa e foram para o paço. E aconteceu, entrementes, que, procurando os assentos da távola redonda, acharam: “Aqui deve ser fulano e aqui fulano.” E quando chegaram ao assento perigoso, encontraram letreiro recentemente escrito que dizia: “A quatrocentos e cinquenta e três anos cumpridos da morte de Jesus Cristo, em dia de Pentecostes, deve haver este assento senhor.”

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        — Por Deus, disse Lancelote, quando esta maravilha ouviu: pois hoje deve haver senhor, porque da morte de Jesus Cristo a este Pentecostes há quatrocentos e cinquenta e três anos. E bem quereria, se pudesse, que este letreiro ninguém visse, até que viesse aquele que o há de acabar.

        E eles disseram:

        — Nós guardaremos bem.

        Então cobriram o assento com um pano de seda vermelha, assim como os outros estavam cobertos.

        Quando o rei veio da igreja, a rainha foi para a câmara com todas as suas donzelas e companhia. E o rei perguntou se era hora de comer.

        — Senhor, disse Quéia, já tempo é de comer, pois já está perto de meio dia; mas se vosso costume, que mantivestes até aqui em todas as grandes festas, quereis manter, não me parece que comer possais, porque em tão grande festa como esta não aconteceu ainda aventura nenhuma; e enquanto aventura não vos acontecesse, não costumáveis comer em nenhuma grande festa.

        — Verdade é, disse o rei; este meu costume mantive sempre desde que fui rei e manterei enquanto viver. E pelas grandes aventuras que na minha corte acontecem, chamam-me rei aventuroso; e por isso manterei as aventuras, porque, a partir da época em que deixarem de acontecer, bem sei que a Nosso Senhor não agradará que muito eu reine daí em diante. Mas assim como as aventuras costumavam acontecer nas festas grandes, nesta sei bem que no dia de hoje não faltarão, antes acontecerão as maiores e as mais maravilhosas que nunca aconteceram, pois adivinha meu coração isto. Não me incomodo de esperarmos um pouco, pois bem sei verdadeiramente que nossa festa não será hoje sem aventura, mas tive tão grande prazer com a vinda de Lancelote e de seus coirmãos, que me esquecia o costume.

        Como o cavaleiro caiu da janela bradando. Enquanto o rei isto dizia, dom Lancelote e muitos outros cavaleiros olhavam para umas janelas que davam para um regato e viram lá estar um cavaleiro que era natural de Irlanda, muito fidalgo e bom cavaleiro de armas, de muito grande fama e muito bem vestido. E estava pensando tanto, que ninguém o podia acordar de seu pensar, de modo que não prestava atenção à festa nem à corte. E quando estava assim pensando, deu um grito:

        — Ai! desgraçado de mim, estou morto!

        E deixou-se cair da janela e quebrou-lhe o pescoço. E os cavaleiros que lá estavam foram até ele para ver o que era e acharam que lhe saía pela boca e pelas narinas chama de fogo tão forte como se fosse de um forno aceso, e tinha em suas mãos uma carta que lhe escapou. Os cavaleiros pegaram a carta, e o rei chegou lá com seus cavaleiros para ver aquela maravilha. E porque era companheiro da távola redonda, quando o rei viu que estava morto, mandou que o levassem fora do paço, porque não quis que sua corte fosse perturbada com ele. E então o levaram para fora com muito grande dificuldade, porque queimava tanto que toda a roupa tinha virado cinza, e não se podia a ele chegar ninguém que não se queimasse, e, posto ele fora do paço, novamente começaram sua alegria como antes e muito tinham grande pesar todos do cavaleiro, porque era muito estimado. Ao rei, muito pesava, mas não o ousava mostrar para não ficar a corte mais triste. E depois que soube que estava na igreja, disse:

        — Cavaleiros, agora podeis comer, porque já por aventura maravilhosa não deixareis de comer, pois me parece muito estranha esta aventura.

        Como o escudeiro disse ao rei as novas da pedra. E eles disto falando, eis que vem um escudeiro que disse ao rei:

        — Senhor, eu vos trago as mais maravilhosas novas de que ouvistes falar.

        — E que novas são? disse o rei, dizei-no-las.

        — Neste vosso paço, aportou agora uma pedra de mármore, na qual está metida uma espada, e sobre esta pedra, no ar, está uma bainha. E eu vos digo que vi a pedra nadar sobre a água, como se fosse madeira.

        E o rei, que o teve por chufa, disse-lhe se podia ver esta pedra. Então disse o escudeiro:

        — Já estão lá muitos cavaleiros da vossa companhia para ver aquela maravilha.

        E o rei, assim que isto ouviu, foi logo para lá com sua companhia de homens bons. E Lancelote, apenas soube o que era, logo foi para lá atrás deles; e Heitor e Persival, que já haviam visto, queriam ver, entre tão grande companhia como lá estava reunida, se haveria alguém que desse cabo agora daquela aventura.

        Quando o rei chegou à ribeira e viu a pedra e a espada que nela estava metida, pelo encantamento de Merlim, assim como o conto já referiu, e uma bainha que estava perto dela no meio do ar, e o letreiro que Merlim fizera, ficou todo espantado.

        — E, amigos, disse ele, novas vos direi. Ora, sabei que por esta espada será conhecido o melhor cavaleiro do mundo, porque esta é a prova pela qual se há de saber; e nenhum, se não for o melhor cavaleiro do mundo, poderá sacar a espada desta pedra.

        [...]

A Demanda do Santo Graal. Texto sob os cuidados de MEGALE, Heitor.  São Paulo: T. A. Queiroz – Editora da Universidade de São Paulo, 1988, p. 29-31.

Fonte: livro Português: Língua e Cultura – Carlos Alberto Faraco – vol. único – Ensino Médio – 1ª edição – Base Editora – Curitiba, 2003. p. 516-518.

Entendendo o conto:

01 – Qual é o clima geral na corte do Rei Artur no início do fragmento?

      Há um clima de expectativa e alegria pela chegada de Lancelote, Boorz e Leonel, pois sua presença é importante para a festa.

02 – O que é a "távola redonda" e qual a sua importância?

      A távola redonda é uma mesa lendária do Rei Artur, onde se reuniam os mais nobres e corajosos cavaleiros do reino. Ela simboliza igualdade entre os cavaleiros e é palco de muitas aventuras e feitos heroicos.

03 – O que é o "assento perigoso" e qual a inscrição que aparece nele?

      O assento perigoso é um lugar na távola redonda reservado para um cavaleiro especial. A inscrição que aparece nele diz: "A quatrocentos e cinquenta e três anos cumpridos da morte de Jesus Cristo, em dia de Pentecostes, deve haver este assento senhor."

04 – Por que Lancelote fica preocupado com a inscrição no assento perigoso?

      Lancelote percebe que a data na inscrição coincide com o dia de Pentecostes em que estão, e teme que a revelação do cavaleiro destinado a ocupar o assento perigoso possa trazer algum tipo de perturbação ou desafio.

05 – Qual é o costume do Rei Artur em relação às grandes festas?

      O Rei Artur tem o costume de não comer em grandes festas até que alguma aventura aconteça em sua corte.

06 – O que acontece com o cavaleiro que é encontrado perto das janelas?

      O cavaleiro, que estava em um estado de transe, tem um acesso de fúria e se joga da janela, morrendo.

07 – Qual é a reação dos cavaleiros ao verem o corpo do cavaleiro morto?

      Os cavaleiros ficam perplexos ao verem que o corpo do cavaleiro emana chamas de fogo.

08 – Que novas maravilhosas o escudeiro traz ao rei?

      O escudeiro traz a notícia de que uma pedra de mármore com uma espada cravada apareceu no paço, e que a pedra está flutuando na água.

09 – O que significa a espada na pedra, segundo o rei?

      Segundo o rei, a espada na pedra é um teste para identificar o melhor cavaleiro do mundo, pois apenas ele será capaz de retirar a espada da pedra.

10 – Qual é a importância de Merlim na história da espada na pedra?

      Merlim, o mago, é quem criou o encantamento da espada na pedra, como forma de revelar o verdadeiro rei ou líder.

 

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

CONTO: O BOQUINHA DA NOITE - JAIR VITÓRIA - COM GABARITO

 Conto: O BOQUINHA DA NOITE

             Jair Vitória

        Boca da noite, Boquinha da Noite – um apelido bem dado e bem certo. E que não vinha de coisas estranhas. Gostava tanto de dança que chegava à casa da pagodeira logo à boca da noite. Dançava de dar íngua nas virilhas e debaixo dos braços. Homenzinho já beirando os cinquenta mas que era uma espoleta nas gafieiras. Os rapazes ficavam basbacados com os mandos deles nas rodas de
dança. E as moças gostavam de dançar com ele...

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      Andava ele quase de felicidade malvivida; mas, se sabia disso, não se importava. Pulava o Rio Grande toda vez que havia um baile no Triângulo Mineiro. Dançava até molhar toda a roupa de suor. Saía para o terreiro, torcia a camisa, secava um pouco, depois voltava e, enquanto houvesse o fole falando música e houvesse dama, estava ele sacolejando as cadeiras. Cabelo já empainando. Tinha um cavalo castanho de encher os olhos. E só, também.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – era o Boquinha da Noite enforquilhado no lombo do Castanho, esfregando na sela as carnes do fundo. Tinha também um cachorro pintado que era seu amigo fiel. Meio de bem, meio de mal com a tal felicidade. Por outros tempos, longe, ele tinha ficado de mal com ela. Tinha sido lá nas margens do São Francisco, para as bandas de Xique-Xique. Naquele rincão ele perdeu a bem-amada. Ficou sorumbático um naco de tempo. Andou de bico virado para as coisas do mundo. Mas um dia pegou a trouxa e, sonhando com as terras de São Paulo, apontou o nariz para o sul. E tinha vivido e vivia sozinho – sem mulher. Pererecava e sambangava daqui e dali e achava pedaços de alegria nos bailes de roça. Morava numa espelunca em vivência com outro rapaz solteiro já meio também chegado nos anos. Era o Ninico.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – sempre o Boquinha enforquilhado no Castanho. Queria ver as mulheres-esposas e moças com os olhos brilhantes para o lado dele. O cavalo era bonito, sabia muito bem daquilo. Enganar a si mesmo não era tolice tanta. As mulheres olhavam para o cavalo, mas olhavam para ele
também. Era bom demais dar de possuir um cavalo bonito.

        -- Castanho, vai comer um pouco de capim, que a gente vai mais de noitinha num baile.

        O cavalo começava a pastar o capim-jaraguá bem depressa.

        -- Tigre, sai pra lá, sá bichinho. Esse cachorrinho anda de maus modos, Ninico.

        Ninico pôs o prato vazio no jirau e não falou nada. A noite vinha
pingando orvalho no capinzal.

        Mas apareceu uma mudança e encheu a tapera onde o Boquinha passava em frente aos pacataus, pacataus, pacataus. Família de grande prole. Havia uma moça de beleza pequena e de sorriso malfeito. Entretanto, tinha o corpo de bom feitio. Voz até grossa e de falar áspero.

        -- Sabe o nome da moça que mudou pra tapera do Jorginho, Ninico?

        -- Sei não, inda não. Só vi pelas costas ainda. É bonita?

        -- Bonita até falar chega, pois...

        -- Mas você não pode mais não nem pensar em moça.

        -- Tu é besta, sô; sou homem de cativar mulher demais ainda.

        -- Ora Boquinha, deixa de pensamento bobo.

        -- Pois vou ganhar a Odete pra mim. esse é o nome dela, ODETE, nome doce de fazer arrepio pelo corpo afora.

        -- Você pega com muita coisa que eu vou lá e tomo essa moça de você, Boquinha...

        -- Pensa nem isso não, Ninico... vou ser o dono dela.

        A noite estava no terreiro, pretinha de fazer medo. Boquinha da Noite dormiu com a cabeça cheia de primaveras. No dia seguinte bateu visita na casa da família novata. Castanho estava no terreiro da sala mastigando o freio e o cachorro Tigre foi cheirar a lata de lavagem na cozinha. Boquinha tagarelou com o chefe. Conversou com os rapazotes. Depois ganhou uma xícara de café da moça. Ficou trêmulo e queimou a boca de apuro de beber café pelando. Minou até água dos olhos do homenzinho, mas ele aguentou firme. O que mais fervia era o sangue dele em doidura de amor. Estava de bater a cabeça sem rumo de paixão pela Odete. Ofereceu ajuda que não dispunha à família pobre. O Boquinha da Noite conversou o que não sabia. O chefe da espelunca que era folgado aceitou tudo. Disse que era bom fazer amizade com os vizinhos novos.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – foi-se o Boquinha enforquilhado no arreio do Castanho. Rindo sozinho pela estrada. A Odete tinha gostado dele sim. Dera-lhe a xícara de café mais um sorriso. Agora ele estava em doidura séria de amor. Ninico iria morrer de inveja.

        Os outros rapazes iriam ficar de olhos arregalados ao vê-lo nos bailes com a mão no ombro da Odete. Ela era mais alta que ele, mas tinha nada não.

        Chegou em casa e conversou com os animais, porque o Ninico não estava. Notava toda a beleza da floresta num pedação de natureza que começava do outro lado do córrego. Beleza maior era casar de novo e com uma doninha de dezessete anos. Ele, o dançarino fanático de cabelos empainando. Feliz mais que sabiá em tardes de sol e em manhãs radiosas. Ria de falar chega a si mesmo
e de fazer graça aos animais. Sacudia a cabeça à toa.

        Quando a noite vinha de novo e o Ninico ainda não havia chegado da roça, Boquinha saiu com um frango carijó debaixo do braço. Era o primeiro de uma série de presentes que ele levaria para a família de Odete.

        -- Seo Roque, tá aqui um franguinho que eu trouxe de presente pra vocês. Na Bahia tinha desse costume com o vizinho novo.

        No vaivém da conversa, na luz mortiça da sala, Odete saiu para ajudar a esticar o assunto. O Boquinha da Noite sentiu o sangue ferver de amor. Conversou o que não sabia. O Sr. Roque disse que ele podia ficar na sala conversando com os meninos enquanto ele ia lavar os pés. Odete de amizade com o homenzinho de língua elástica sentou no mesmo banco. Quando ele foi embora, saiu tonto de paixão olhando para as estrelas. O vento sacudia as ramas e a lua começava a nadar no céu. Boquinha enchia os pulmões de ar e o coração de esperança. Decerto ela também tinha gostado dele.

        O Boquinha agora estava dando de toda a noite passar um pedaço de tempo na casa de Odete. Não era nada a casa dos velhos, mas casa da Detinha. Mandou mais frangos de presente e esqueceu um pouco dos pagodes. Odete não ia aos bailes no começo, pois não tinha roupa. Mas apareceram cortes de vestido de presente. O velho Roque viu o gosto do Boquinha da Noite pela filha. Deixou aquilo acontecer como água de regato que corre normalmente. Era
proveitoso, não precisava comprar vestido para a Detinha, ela ganhava do homenzinho atacado de paixão. Boquinha passava de galope três ou quatro vezes por dia em frente à casa da moça.

        -- Ninico, vê se gosta desse pano. Vou dá pra Detinha.

        -- É bonito sim. Mas tira isso da cabeça, sô. A moça tá aí querendo te enganar, sô.

        -- Enganar. Tu que não sabe. Já peguei na mão dela lá embaixo daquela figueirinha e dei até bicota nela. Ela riu, sô.

        -- Então o negócio tá sério mesmo, uai.

        -- Falo com o velho daqui uns tempos.

        Os rapazes da vizinhança abusavam do Boquinha. Achavam que Odete queria apenas presente dele.

        -- A Odete vai casar com Baianinho, seo Roque? – era um desses homens de língua elástica que perguntava ao pai da moça.

        -- Ham – rosnou o Sr. Roque erguendo o cutelo de cortar arroz. – Eu vou dar uma pedrada só, mas a minha pedrada vai ser certeira, eu não erro não, vou dar uma pedrada só; onde já se viu coisa dessa?!

        Roque falava daquilo, mas ficava muito contente quando a filha ganhava um corte de vestido do Boquinha da Noite e a família ganhava um frango para almoçar no domingo.

        Boquinha da Noite estava de deitar e levantar pensando na Detinha. Remediava o tempo com alegrias sonhadas de amor. Mulher mais bonita do mundo!

        Mulher mais bonita do mundo, sim senhor. Passar noites com ela num colchão de palha era viver de verdade. Aquela de outros tempos, noutro lugar, nem menos chegava perto da Detinha. Estava iludido mais que peixe pela isca. Veio a primavera de verdade e as árvores floresceram sem medo. Os ipês já tinham ficado carregadinhos de flor. Era a coisa mais bonita do mundo pensar
na Detinha com os olhos cheios de flor. Cabelo empainando, sem mentira, mas sentindo amor de verdade. Nunca deixava de levar presente à moça. Quando saía da casa da amada, depois de tempão de namoro, tinha vontade de voltar para trás quando chegava no meio do caminho. Os noitibós faziam frejo no charco, mas aquilo não espaventava seu querer de amor. Estava de não dormir direito. Dava agora de trabalhar no roçado do pai da criatura amada só para dar
de mão, sem cobrar nada. No fundo, no fundo mesmo do íntimo, Roque até gostava do Boquinha da Noite. Ele era amigo dos leais que ajudavam sem medir esforço. Mas aquele homenzinho dos cabelos empainando casar com a filha dele, isso era neca. Queria o sérico dele, os presentes. Deixava o Boquinha namorar com a filha só para iludi-lo com momentos de alegria.

        -- Sabe, Ninico, já três vezes fiz ameaça de falar com o velho no meu casamento com a Detinha.

        -- Ela aceita?

        -- Falei com ela ainda não de casamento, mas aceita sim, ora.

        -- Sei não. Acho que ela tá só te iludindo.

        -- Sou eu algum bobo... lá minha cara, sô.

        Passou mais um pedaço de tempo e o povo da redondeza comentava o caso com galhofa. Boquinha da Noite nem queria saber de nada. Era ele e ele mesmo o dono da Detinha. Estava de botar orgulho em si mesmo. Cabeça erguida enforquilhado na sela do Castanho.

        Um dia, voltando da roça por uma vereda onde as formigas passeavam também, o Boquinha ensaiou demoradamente para pedir Detinha em casamento. Com muito esforço o pedido de casamento saiu com voz tremida. Roque ouviu com naturalidade, sem dar importância.

        -- Sei, sei, eu não sou contra nada, Severino – Roque respondeu falando o nome de batismo do Boquinha da Noite.

        Boquinha da Noite pegou o trilho e foi para casa com um sufocamento de felicidade. Contou ao companheiro Ninico o caso que tinha acontecido. Ninico torceu o bigode e até acreditou que o Boquinha da Noite conseguiria mesmo casar com a Detinha. Ficou matutando aquilo muito tempo. O Boquinha da Noite era um homenzinho de língua solta mesmo, dono de uma lábia comprida.
Até ele próprio estava com inveja do Boquinha. Ah, sujeitinho de sorte. Como era possível um homem feito beirando os cinquenta anos casar com uma menina de dezessete?

        Detinha precisava arranjar um namorado de verdade mesmo. Roque falou isso com um risinho sarcástico pendurado nos lábios. Boquinha da Noite pensava que aquilo fosse namoro sério. Mas Detinha precisava de um namorado jovem.

        E foi o que aconteceu num baile. Detinha toda cheirosa e bonita dentro de um vestido presenteado pelo Boquinha. Ele, feliz que nem um passarinho. Naquela noite namoraria à beça. Mas Detinha deu-se de esquerda e olhou firme para outro moço. Depois de pouco tempo trançaram as mãos. Noite alta de amargura. Severino... Boquinha da Noite ficou macambúzio num canto. Desapontado mais que nunca. Detinha rindo à solta com o braço do rapaz enlaçado em sua cintura mesmo com a sanfona calada. Uma provocação ferindo fundo!

        Madrugada de amargura. Boquinha da Noite saiu com palpite de morte no coração. Ninico ficou no pagode. Em casa pegou o Castanho, botou a arreata no lombo do animal, encavalou-se e saiu com palpite de morte já mais crescido ainda. Que presente e que presentes tinha dado à Detinha.

        -- Pacatau, pacatau, pacatau – a madrugada acordando sob os cascos do Castanho na estrada do Rio Grande. E mais vontade de morrer aparecendo. E o rio, cheio de roncar medo. Era uma baixada longa e perigosa. Um palpite sem limite de morte. Nadar ele não sabia, tinha até medo d'água.

        Disparou o Castanho apertando com cegueira as esporas e batendo o chicote com alucinação. Um cavalo bom de rédea e obediente até demais. Foi o cavalo disparado e sem parar caiu no rio até de meio-mergulho. Uma loucura na madrugada. A lua não estava olhando e nem velando por ninguém. A água brava! Foi-se o corpo do homem para não mais ser encontrado. O cavalo amanheceu pastando no varjão, ainda arreado; Detinha chorou umas lágrimas
sentidas quando soube de tudo aquilo, mas depois o tempo apagou o sentimento de culpa.

        Contam os visionários demais, que, pela boquinha da noite, um homem dança no meio do rio, sobre as águas, e uma sanfona soa indefinidamente. Mas o vulto some quando os visionários demais afirmam a visão, e o som da sanfona vai embora quando eles aguçam os ouvidos.

VITÓRIA, Jair. O Boquinha da Noite. In: Cuma-João. 2. ed. São Paulo: Ática, 1978. p. 49-54.

Fonte: livro Língua e Literatura – Faraco & Moura – vol. 1 – 2º grau – Edição reformulada 9ª edição – Editora Ática – São Paulo – SP. p. 111-115.

Entendendo o conto:

01 – Qual a principal característica de Boquinha da Noite que dá nome ao conto?

      Sua paixão por dança, que o levava a frequentar bailes até altas horas da noite.

02 – Qual a relação de Boquinha da Noite com o cavalo Castanho?

      O cavalo era seu fiel companheiro, um símbolo de status e um meio de transporte para os bailes.

03 – Como o passado de Boquinha da Noite influencia seu comportamento presente?

      A perda da bem-amada no passado o deixou solitário e em busca constante de afeto, o que o leva a perseguir a paixão por Odete.

04 – Qual o papel de Odete na vida de Boquinha da Noite?

      Odete representa a esperança de amor e felicidade para Boquinha, mas também se torna o objeto de sua obsessão e, posteriormente, a causa de sua tragédia.

05 – Como o ambiente rural e os bailes são retratados no conto?

      O ambiente rural é retratado como um espaço de sociabilidade e onde os bailes são eventos importantes para a comunidade.

06 – Qual a importância da figura de Ninico na narrativa?

      Ninico serve como contraponto a Boquinha, oferecendo uma visão mais realista da situação e tentando alertá-lo sobre as ilusões de Odete.

07 – Como o final do conto pode ser interpretado?

      O final é trágico e ambíguo. Pode ser interpretado como uma punição por sua obsessão, uma libertação de sua dor ou até mesmo uma elevação ao status de lenda local.

08 – Quais os temas principais abordados no conto?

      Amor, paixão, obsessão, ilusão, morte, solidão e a busca por felicidade são alguns dos temas presentes na narrativa.

09 – Qual a importância da linguagem utilizada pelo autor para contar a história?

      A linguagem simples e direta, com expressões populares, contribui para a construção de um universo realista e próximo do universo dos personagens.

10 – Qual a sua opinião sobre a atitude de Boquinha da Noite ao longo da história?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Esta é uma pergunta aberta que incentiva a reflexão individual sobre as ações e motivações do personagem.