sexta-feira, 27 de novembro de 2020

CRÔNICA: UM LUGAR AO SOL - ÉRICO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: Um lugar ao sol

                  Érico Veríssimo

        Entraram na casa vizinha.

     Fernanda sentia sempre uma opressão quando se via na sala da casa de D. Magnólia. Tudo ali tinha um ar tão triste, tão sombrio, tão doentio... Os móveis eram escuros. A Bíblia encadernada de couro negro em cima da mesa. (D. Magnólia era metodista.) Quadros nas paredes com legendas tiradas das Escrituras. Um cheiro de defumação. E – o mais horrível de tudo – no canto da sala, a figura daquele homem sentado, vencido, daquele homem enorme, magro, amarelo, roído pelo câncer.

        Era Orozimbo, o marido de D. Mag. Quando lhe falava, Fernanda tinha a impressão desagradável de que estava falando com um morto.

        A luz da sala estava apagada. Entrava pelas janelas uma fraca claridade que vinha das lâmpadas da rua.

        Fernanda sentiu logo a presença de Orozimbo. Cumprimentou:

        -- Boa noite, seu Zimbo!

        E a voz dele, fraca, doente, mas mesmo assim profunda, incoerentemente musical, respondeu:

        -- Boa noite!

        Entraram no quarto de Lu. D. Mag acendeu a luz e retirou-se, fechando a porta. Fernanda viu a menina a chorar estendida na cama, de borco, com a cabeça mergulhada no travesseiro. Ajoelhou-se junto dela, passou-lhe a mão pelos cabelos.

        -- Então, bobinha. Por que é que está chorando?

        Lu soluçava sem responder. E depois, como Fernanda insistisse muito na pergunta, explodiu:

        -- Eu... eu... queria... fazer... uma fantasia... e... e... essa besta não quer....

        -- Não diga assim, Lu. Ela é sua mãe.

        -- Besta! Isso que ela é.

        D. Mag chorava no corredor. Por que Deus a castigava assim, dando-lhe uma filha desobediente e blasfema? Não era ela uma boa cristã? Não ia todos os domingos ao culto? Não lhe bastavam os trabalhos que passara com o marido nos primeiros tempos do casamento, quando ele andava na pândega com outras mulheres? Não chegava o que ela sofria agora que ele estava doente e vivia ali no canto, derrotado, a falar na morte, a queixar-se da vida, a atormentá-la a todo o instante? Não bastava a trabalheira que ela tinha de pedalar a Singer todo o dia para ganhar dinheiro para o sustento da casa? Para ganhar dinheiro para dar vestidos e educação àquela ingrata?

        Fernanda passava a mão pela cabeça de Lu e lhe dizia de mansinho:

        -- Não vê que não é direito você ir ao baile de carnaval quando seu pai está tão doente? Não vê que sua gente é pobre e que você precisa ter muito juízo?

        Lu explodiu de novo, sentando-se na cama:

        -- Eu tenho ódio dela. Tenho ódio dele. Dos dois!

        Fernanda se pôs de pé.

        -- Você não sabe o que está dizendo! Ódio de seu pai, de sua mãe?

        Lu tornou a cair de borco. Sua voz saía abafada debaixo do travesseiro.

        -- Ódio, ódio, ódio.

        Sim: tinha raiva dos pais. Porque eles não queriam que ela fosse feliz, que tivesse um namorado, que frequentasse os cinemas, os bailes. Que culpa tinha de ter nascido pobre? Que culpa tinha da doença do pai ou das ideias religiosas da mãe? Era moça, queria aproveitar a vida. Um dia a velhice chegava e tudo ficava perdido para sempre. Não havia moças que tinham automóveis, que cantavam no rádio, que viajavam, que dançavam, que possuíam vestidos bonitos? Então? Ela era acaso aleijada? Não. Era um monstro de feia? Também não. Por que não havia de ser feliz? Oh! Deus podia matá-la, podia castiga-la mas ela não sufocaria por mais tempo aquela raiva.

        -- Vamos – murmurou Fernanda – faça uma forcinha. Pelo menos finja. Não vê que sua mãe sofre, seu pai sofre?

        Lu resistia. Obstinava-se. Havia de fazer a fantasia, havia de ir aos bailes do Cassino, nem que para isso tivesse de fugir.

        Fernanda por fim cansou. Sentou-se na cama, passou a mão pela testa. Ela trazia um filho no ventre. Talvez uma filha. Hoje fazia parte de seu ser: amanhã poderia haver uma separação tremenda como a que ela estava vendo... Teria o mundo entre ela e a sua criaturinha. Um milhão de desentendimentos, de conflitos, de interesses em choque....

        -- Então Lu, não quer ser boazinha?

        Lu ergueu-se. Tinha uns olhos verdes muito grandes.

        Era fina de corpo e suas mãos, longas e brancas.

        Fernanda contemplou-a com simpatia e pena. Lu tomou-lhe das mãos e, com olhos vermelhos de chorar, perguntou:

        -- Tu achas que eu sou má? Achas? Será que nem tu, nem tu me compreendes?

        Encostou a cabeça no peito da outra e desatou de novo o choro.

        Cinco minutos depois Fernanda saiu do quarto.

        D. Mag esperava-a no meio da sala. Nos seus olhos espantados havia uma interrogação ansiosa. Apesar de estarem na penumbra, Fernanda viu a dor que os velava.

        Aproximou-se dela, bateu-lhe no ombro.

        -- Não faça caso, D. Mag... Isso passa. Amanhã quando ela voltar da escola e estiver mais calma, eu passo um sermão nela. Por hoje, lhe peço: não diga mais nada. Deixe... Essas criaturinhas são assim. Quanto mais confiança se dá, mais elas incomodam...

        Enquanto falava, Fernanda ouvia, horrorizada, a respiração arquejante do doente no seu canto escuro.

        -- Bom, deixe ajudar a mamãe a lavar os pratos.

        Deu boa-noite e voltou para casa.

              Um lugar ao sol. Rio de Janeiro, Globo, 1978.

    Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 44-7.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=https%3A%2F%2Fcromatas.com%2Fcontos-2%2Fa-lanpada%2F&psig=AOvVaw1b_1R9J3QD5FgZseUpYodX&ust=1606600912025000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCICK-_vco-0CFQAAAAAdAAAAABAK

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Metodista: seguidor de seita anglicana, caracterizada por grande austeridade.

·        Pândega: farra, folia.

·        Singer: marca de máquina de costura.

·        Incoerentemente: contraditoriamente.

·        Obstinar-se: aferrar-se a uma ideia, teimar.

·        De borco (ô): de bruços.

·        Velava: encobria, tornava sombrio.

·        Blasfema: pessoa que diz blasfêmias (ofensas contra Deus ou contra pessoas ou coisas respeitáveis).

·        Arquejante: ofegante.

02 – Qual é o cenário do desentendimento?

      É uma casa de família em que a mãe é metodista, o pai sofre de câncer e a filha não aceita sua posição social.

03 – Qual o assunto do texto?

      Uma garota, cuja mãe é religiosa e o pai está doente, revolta-se com a mãe que contraria seus desejos de diversão e de liberdade.

04 – Como poderíamos caracterizar Lu?

      Lu é adolescente, seus olhos são verdes e muitos grandes, seu corpo é fino e suas mãos, longas e brancas. Quer aproveitar a vida: passear, sair, ir ao cinema, fazer coisas que pessoas de sua idade fazem.

05 – Qual é o conflito presente no texto?

      É o conflito entre pais e filhos e, mais profundamente, o conflito entre o prazer e a morte.

06 – Como se sente D. Mag em relação à filha?

      D. Mag sente que, apesar de seus esforços, Deus a castigou.

07 – Como se sente Lu em relação à família? Justifique com palavras do texto.

      Lu não se sente parte da família e tem ódio do pai e da mãe. “—Eu tenho ódio dela. Tenho ódio dele. Dos dois!”; “Ódio, ódio, ódio.”

08 – Que concepção de felicidade tem Lu?

      Lu quer divertir-se, ser feliz, namorar, viajar. Chamar a atenção do aluno para o fato de que Lu, no afã de aproveitar a vida, pensa somente nas coisas mais prazerosas que ela pode lhe oferecer.

09 – Que papel representa Fernanda nesse conflito?

      Fernanda é a testemunha do drama familiar, amiga e conselheira de Lu.

10 – Por que Fernanda se condói com o drama de Lu?

      Como está grávida, ela se preocupa com as relações que terá, no futuro, com a filha ou filho que irá nascer.

11 – O texto é narrado em terceira pessoa, por um narrador onisciente. Justifique a afirmação usando elementos do texto.

      O autor conhece os sentimentos e pensamentos das personagens. “Fernanda sentia sempre uma opressão quando se via na sala da casa de D. Magnólia.” / “D. Mag chorava no corredor. Por que Deus a castigava assim, dando-lhe uma filha desobediente e blasfema?”

12 – Justifique o título do texto.

      Resposta pessoa do aluno.

CRÔNICA: NOITE DE VENTO, NOITE DOS MORTOS - ÉRICO VERÍSSIMO - COM GABARITO

 Crônica: Noite de vento, noite dos mortos

                   Érico Veríssimo

   No inverno do último ano como interno no Colégio Cruzeiro do Sul ocupava sozinho o quarto número 50, um cubículo estreito onde mal cabiam uma cama, um lavatório de ferro com jarro e bacia, e o baú onde eu guardava as minhas roupas. Nessa época comecei a sofrer de insônias. Talvez insônia não seja a palavra exata para definir o que eu sentia, pois na realidade sono mesmo não me faltava. O que acontecia era que eu acordava sobressaltado cerca das dez horas da noite e começava a sentir aos poucos no quarto escuro e fechado uma angústia de emparedado. Precisava desesperadamente de acender uma luz – o que não era possível, pois o dormitório era iluminado por lâmpadas alinhadas no centro do teto e que se apagavam irremediavelmente a uma hora certa. Minhas pálpebras em geral pesavam de sono, mas aquela opressão no peito, aquela ansiedade me mantinham acordado. Era uma espécie de falta de ar, de necessidade de companhia humana ou pelo menos de uma janela aberta para a noite, para o mundo, para a vida. E o pior era que essa angústia podia transformar-se em pânico dum momento para outro. Eu tinha a impressão de estar num túnel sem ar, ou sepultado numa carneira, fechado num féretro...

        Consultei um médico de ar bondoso e bovino que costumava tratar dos internos do Cruzeiro do Sul. Fez-me perguntas. Sofria eu de falta de memórias? Era distraído? Algum problema me preocupava? Eu respondia numa atitude meio defensiva de quem tem segredos a guardar. Por fim o bom homem me receitou Fosfato Ácido de Oxford. Tomei um vidro sem nenhum resultado positivo.

        Observava que minha ansiedade aumentava ou então era desencadeada nas noites em que eu ouvia o vento uivar lá fora. Sim, a voz do vento era um fator de ansiedade. Eu tratava de chamar-se à razão. Tudo estava bem. Em breve apareceria o sol e a vida normal começaria. Inútil. Aquela coisa que me comprimia o peito e me dava gana de sair correndo a abrir janelas e portas, a acender luzes e a procurar a companhia dos colegas, continuava. Só madrugada alta – e eu não sabia como – é que conseguia dormir algumas horas. (Num romance que eu haveria de escrever dali a quase 30 anos, uma personagem diria: “Noite de vento, noite dos mortos”.)

                 Solo de clarineta. Globo, 1974.

         Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 25-6.

Fonte da imagem:https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.luizcarlosbill.com.br%2Fblog%2Fcronica%2Fo-frio-e-o-vento-da-noite%2F&psig=AOvVaw2RfOYPXKXmFP6wEI5rjPE-&ust=1606600646902000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPCk6vjbo-0CFQAAAAAdAAAAABAD

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Carneira: gaveta em que, num cemitério, se enterram cadáveres.

·        Féretro: caixão de defunto.

02 – Qual é a importância do lugar sobre o fato relatado no texto?

      É o lugar que produz a angústia que oprime o narrador.

03 – Como se sentia o narrador no quarto número 50?

      Sentia-se preso, emparedado, não conseguia dormir direito, embora tivesse sono.

04 – Identifique no texto um fato que mostra que o autor vivia sob um regime autoritário.

      “... o dormitório era iluminado por lâmpadas alinhadas no centro do teto e que se apagavam irremediavelmente a uma hora certa.”

05 – Em que pessoa é narrado o texto? E de que se trata?

      O texto é narrado em primeira pessoa. Trata-se de uma recordação da infância em um colégio interno.

06 – O que você acha que o autor pretendeu expressar com a frase “Noite de vento, noite dos mortos”?

      Resposta pessoal do aluno.

07 – De acordo com o texto, pra você o que é possível perceber nas escolas de antigamente?

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: Percebe-se que a escola internato antiga era bem mais autoritária.

CRÔNICA: MISSA PARA ALUNO EXTERNO - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: Missa para aluno externo

                   Rubem Braga

     Hoje é mais fácil ser católico do que no meu tempo de criança. Primeiro apareceram as missas de domingo de tarde. Agora até missa no sábado pode ficar valendo para o domingo. Acabaram com a coleta de esmolas durante a missa; não há mais aquele menino com a bandeja.

        Eu já era rapazinho quando o diretor do ginásio lá de Cachoeiro, homem muito piedoso, apareceu com uma novidade: os alunos externos, cujos pais fossem católicos, também teriam de ir à missa domingo. A gente devia ir cedinho ao colégio, lá se juntar aos internos, formar fila e ir para a igreja, que era perto – só atravessar o pátio e subir um barranco.

        No primeiro domingo eu e mais dois rapazinhos fugimos na curva do barranco: tínhamos um jogo de futebol marcado para aquela manhã e não era possível deixar de ir. Lembro-me do pito que levei por causa disso do diretor, na segunda-feira, pois houve um porcaria de um menino que denunciou nossa fuga. A novidade não estava agradando a ninguém, nem mesmo a muitos pais de alunos externos; afinal o colégio não tinha nada a ver com o que a gente fazia domingo.

        Da segunda missa não houve como escapar. Sete e meia estávamos no colégio e às oito ficamos arrumados no coro da igreja. Nós todos ali chateados, até mesmo os que costumavam ir à missa todo domingo, pois era muito melhor estar lá embaixo vendo as pessoas que ali em cima com os outros alunos. Mas não havia remédio.

        Foi aí que aconteceu a coisa. Quando apareceu o menino com a bandeja. Antes de ele chegar ao lugar em que eu estava, senti que havia algo de anormal. O coroinha estava vermelho, zangado, mas sempre que abria a boca seus sussurros eram abafados por um coro de psiu! Psiu!

       Logo percebi do que se tratava. Algum rapaz maroto tivera a ideia, que todos acharam genial: a gente punha a moedinha na bandeja e tirava outra, como se fosse troco; só que o troco era maior que a esmola... Havia quem pusesse um tostão e tirasse deztões. Lembro-me de que pus duzentos réis e tirei uma pratinha de quinhentos. Isso foi naquela hora em que na igreja todo mundo deve ficar em silêncio, e se ouve apenas uma campainha tocando fininho – tlim, tlim, tlim... O menino estava com tanta raiva que a bandeja tremia em sua mão; logo depois disse um desaforo e desistiu da coleta, enquanto nós tínhamos frouxos de riso.

        Foi assim que morreu aquela ideia de obrigar aluno externo a ir à missa.

     Um cartão de Paris. Rio de Janeiro, Record, 1997.

    Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 23-5.

Fonte da imagem: https://www.google.com/url?sa=i&url=http%3A%2F%2Fwww.cscj-pi.com.br%2Fcscj%2FmostranoticiaNOVA.php%3Fidnoticia%3D367&psig=AOvVaw32VqdIZOnoUj8feiDhyfG2&ust=1606600227145000&source=images&cd=vfe&ved=0CAIQjRxqFwoTCPCEo7Xao-0CFQAAAAAdAAAAABAD


Entendendo a crônica

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Coleta: arrecadação.

·        Pito: advertência, repressão, bronca.

·        Piedoso: devoto, religioso.

·        Anormal: fora do comum.

·        Alunos externos: estudantes que morram com os pais.

·        Alunos internos: estudantes que morram no colégio.

·        Sussurros: vozes baixas.

·        Maroto: esperto, malandro.

·        Frouxos: ataques, acessos.

02 – Que período de sua vida o narrador está nos apresentando?

      O narrador é um adulto que recorda um episódio de sua infância.

03 – Existe um sentido oculto no primeiro parágrafo do texto, principalmente na frase: “Hoje é mais fácil ser católico do que no meu tempo de criança”. Qual seria esse sentido?

      O parágrafo é irônico porque ser católico não é apenas ir à missa e dar esmolas.

04 – Qual foi a decisão que originou o fato central do texto?

      Foi a decisão do diretor de obrigar os alunos externos a frequentar a missa de domingo.

05 – Qual é o fato central do texto?

      O desagrado dos alunos externos por serem obrigados a frequentar a missa de domingo e suas tentativas de se livrar desse compromisso.

06 – Por que os alunos externos não aceitaram a ideia do diretor?

      Porque tinham outras atividades – como jogar futebol – para passar o domingo.

07 – No texto chocam-se duas forças opostas. Quais são essas forças? Qual é a vencedora?

      São a liberdade e o autoritarismo. A vencedora é a liberdade.

08 – Vamos resumir o texto? Considere tempo, lugar, personagens e conflito.

      Resposta pessoal do aluno. Sugestão: No passado, quando o narrador era menino, o diretor do colégio em que estudava tentou obrigar os alunos externos a frequentar a missa domingo. Como tinham atividades mais interessantes, os alunos, contrariados, tentaram inutilmente escapar da obrigação. Finalmente, armaram tamanha confusão na missa que o diretor desistiu de sua id

CRÔNICA: MAR - RUBEM BRAGA - COM GABARITO

 Crônica: Mar

                   Rubem Braga

     A primeira vez que vi o mar eu não estava sozinho. Estava no meio de um bando enorme de meninos. Nós tínhamos viajado para ver o mar. No meio de nós havia apenas um menino que já o tinha visto. Ele nos contava que havia três espécies de mar: o mar mesmo, a maré, que e menor que o mar, e a marola, que é menor que a maré. Logo a gente fazia ideia de um lago enorme e duas lagoas. Mas o menino explicava que não. O mar entrava pela maré e a maré entrava pela marola. A marola vinha e voltava. A maré enchia e vazava. O mar às vezes tinha espuma e às vezes não tinha. Isso perturbava ainda mais a imagem. Três lagoas mexendo, esvaziando e enchendo, com uns rios no meio, às vezes uma porção de espumas, tudo isso muito salgado, azul, com ventos.

        Fomos ver o mar. Era de manhã, fazia sol. De repente houve um grito o mar! Era qualquer coisa de larga, de inesperado. Estava bem verde perto da terra, e mais longe estava azul. Nós todos gritamos, numa gritaria infernal, e saímos correndo para o lado do mar. As ondas batiam nas pedras e jogavam espuma que brilhava ao sol. Ondas grandes, cheias, que explodiam com barulho. Ficamos ali parados, com a respiração apressada, vendo o mar…

        Depois o mar entrou na minha infância e tomou conta de uma adolescência toda, com seu cheiro bom, os seus ventos, suas chuvas, seus peixes, seu barulho, sua grande e espantosa beleza. Um menino de calças curtas, pernas queimadas pelo sol, cabelos cheios de sal, chapéu de palha. Um menino que pescava e que passava horas e horas dentro da canoa, longe da terra, atrás de uma bobagem qualquer – como aquela caravela de franjas azuis que boiava e afundava e que, afinal, queimou a sua mão… Um rapaz de quatorze ou quinze anos que nas noites de lua cheia, quando a maré baixa e descobre tudo e a praia é imensa, ia na praia sentar numa canoa, entrar numa roda, amar perdidamente, eternamente, alguém que passava pelo areal branco e dava boa-noite… Que andava longas horas pela praia infinita para catar conchas e búzios crespos e conversava com os pescadores que consertavam as redes. Um menino que levava na canoa um pedaço de pão e um livro, e voltava sem estudar nada, com vontade de dizer uma porção de coisas que não sabia dizer – que ainda não sabe dizer.

        Mar maior que a terra, mar do primeiro amor, mar dos pobres pescadores maratimbas, mar das cantigas do catambá, mar das festas, mar terrível daquela marte que nos assustou, mar das tempestades de repente, mar do alto e mar da praia, mar de pedra e mar do mangue… A primeira vez que sai sozinho numa canoa parecia ter montado num cavalo bravo e bom, senti força e perigo, senti orgulha de embicar numa onda um segundo antes da arrebentação. A primeira vez que estive quase morrendo afogado, quando a água batia na minha cana e a corrente do “arrieiro” me puxava para fora, não gritei nem fiz gestas de socorro; lutei sozinho, cresci dentro de mim mesmo. Mar suave e = oleoso, lambendo o batelão. Mar dos peixes estranhos, mar virando a canoa, mar das pescarias noturnas de camarão para isca. Mar diário e enorme, ocupando toda a. vida, uma vida de bamboleio de canoa, de paciência, de força, de sacrifício sem finalidade, de perigo sem sentido, de lirismo, de energia; grande e perigoso mar fabricando um homem…

        Este homem esqueceu, grande mar, muita coisa que aprendeu contigo. Este homem tem andado por aí, ara aflita, ora chateado, dispersivo, fraco, sem paciência, mais corajoso que audacioso, incapaz de ficar parado e incapaz de fazer qualquer coisa, gastando-se como se gasta um cigarro. Este homem esqueceu muita coisa mas há muita coisa que ele aprendeu contigo e que não esqueceu, que ficou, obscura e forte, dentro dele, no seu peito. Mar, este homem pode ser um mau filho, mas ele é teu filho, é um dos teus, e ainda pode comparecer diante de ti gritando, sem glória, mas sem remorso, como naquela manhã em que ficamos parados, respirando depressa, perante as grandes ondas que arrebentavam – um punhado de meninos vendo pela primeira vez o mar…

 Rubem Braga. “Cem crônicas escolhidas”. José Olympio, Rio de Janeiro: 1958.

       Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 11-3.

Entendendo a crônica:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo?

·        Ciânea: gênero de águas-vivas.

·        Búzios: conchas de moluscos.

·        Maratimbas: caipiras.

·        Catambá: espécie de bailado popular.

·        Batelão: grande embarcação.

·        Dispersivo: que não se concentra no que faz.

02 – Qual é o tipo desse texto presente nesta unidade?

      É uma crônica.

03 – Qual é o tema desse texto?

      Trata-se da primeira vez e da reação dos envolvidos às novas experiências.

04 – No texto, qual é o relato completo de uma nova experiência? Explique sua resposta.

      No texto “Mar”, de Rubem Braga, conta-se a experiência de ver o oceano de forma mais completa, descrevendo inclusive suas consequências no tempo.

05 – Qual é o espaço de tempo decorrido entre o acontecimento e o registro dele no texto?

      Um adulto recorda um episódio da infância.

 

REPORTAGEM: JOVENS VIVEM FASCÍNIO DA PRIMEIRA VEZ - GLÁUCIA LEAL - COM GABARITO

 Reportagem: Jovens vivem fascínio da primeira vez

                      É a emoção de quem nunca tinha visto mar, cinema, teatro, shopping ou computador

Gláucia Leal

        Aos 19 anos, Regina descobriu que o mar parece não ter fim. Beatriz, de 16, concluiu que o tempo passa de forma diferente em um palco de teatro. Sidnei, de 18 anos, se surpreendeu ao entrar em um cinema pela primeira vez e constatar que a tela de exibição de filmes é dezenas de vezes maior que a de uma televisão. E Fábio, de 15 anos, nunca havia imaginado que em um shopping center houvesse desde banheiros até cães à venda.

        Experiências aparentemente corriqueiras para muitas pessoas que vivem em metrópoles ainda podem ser inéditas e deixar jovens que moram em São Paulo há pelo menos quatro anos com frio na barriga, olhos arregalados e coração disparado diante da novidade.

        Durante uma semana, a reportagem do Estado acompanhou a aventura de sete jovens estudantes e trabalhadores, com idades entre 15 e 20 anos. Moradores de periferia da cidade, eles nunca haviam vivido a emoção de ir ao cinema ou ao teatro, jamais tinham entrado em um shopping nem se aproximado de um computador ou experimentado uma pizza.

        “Meu Deus, o mar é muito maior e bem mais lindo do que e podia imaginar”, exclamava a baiana Regina dos Santos Souza, com os braços esticados, como se quisesse abraçar as ondas da Praia de Pitangueiras, no Guarujá. Ainda em São Paulo, era difícil esconder a ansiedade. “Meu sonho é ver o mar de pertinho, mas algumas vezes a gente vai vivendo e se esquece dos sonhos.” Há quatro anos ela mora em São Paulo e até poucos dias antes de seu bebê nascer, há um mês, Regina dava aulas de reforço para estudantes primários.

        Ela já trabalhou também como atendente de público na Telecomunicações de São Paulo (Telesp) e vendedora em um bazar, no jardim Rosana, próximo de sua casa. Há cinco dias, a convite do Estado, ela se deu o direito de virar criança diante do mar.

        Depois de um momento de indecisão – “o mar não vai me puxar?” –, ela só teve tempo de tirar os sapatos. Esqueceu-se do vento gelado, do frio, da calça jeans e da camisa de mangas longas que vestia e correu para a água. Pulou, gargalhou e mergulhou do jeito que estava. Só depois lembrou-se de pôr roupa de banho.

        “Quero que meu filho tenha o que eu não tive e voou leva-lo para ver o mar assim que dizer um ano”, prometeu a si mesma, ao sair da água. Desde que deixou o litoral, entretanto, uma dúvida a atormenta: “Onde fica o fim do mar?”

        ESTUDOS – Entre os planos de Regina, que mora com o marido e o filho no Jardim Casa Branca, na Zona Sul, está o retorno aos estudos, interrompidos no segundo ano do colegial. Ela pretende se formar em magistério. “Tenho jeito para dar aulas, mas quero aprender mais”.

        Outro objetivo de Regina é comprar uma casa. Atualmente o casal aluga três cômodos de fundos. “Sou ambiciosa e saí da minha cidade, Santa Luz, porque queria viver em um lugar onde eu pudesse ter oportunidade, onde tivesse coisas para ver e conhecer”, esclareceu. “Acho que tem coisas que estão escritas nas estrelas”, afirmou. “Eu sabia que iria ver o mar, mas nem desconfiava que seria logo”.

        Apesar de apostar nos desígnios da sorte, Regina tem, às vezes, problemas para se localizar em seu próprio bairro. Acostumada a andar só de ônibus, tem dificuldades para achar a rua onde mora há mais de um ano, quando precisa voltar de carro para casa. “Me confundo em alguns lugares.”

  Teatro e cinema são novidade para adolescentes

                  Beatriz e Sidnei ficaram ansiosos com a possibilidade de assistir à peça e filme

        Até poucos minutos antes do início da peça Pérola, protagonizada pelos atores Vera Holtz, Sérgio Mamberti e Anna Aguiar, no Teatro Jardel Filho, a estudante e secretária de uma empresa de franquias, Beatriz Cristina Guerato, de 16 anos, não fazia a menor ideia do que veria no palco. Paulistana, ela mora com a mãe e dois irmãos mais velhos em Pirituba, na Zona Norte. Nunca havia entrado em um teatro. “Nem quando eu era criança”, afirmou Beatriz.

        Ela tem planos de se mudar com a família para Chicago, nos Estados Unidos, e se formar secretária executiva. “Sei que os atores vão representar, mas prefiro não criar expectativas, assim recebo bem o que vier.”

        A postura racional, entretanto, não impediu que a emoção surgisse. “Estou com frio na barriga”, confidenciou ao ouvir a campainha. Antes que as luzes se apagassem, porém, veio uma breve decepção: uma tela de vídeo desceu com nomes de artistas e patrocinadores projetados. Para Beatriz foi um susto. “Não vai ser ao vivo?”, inquietou-se.

        Ao saber que em breve os atores estariam em cena, não descolou os olhos do palco. Ao final do espetáculo, permaneceu alguns instantes em silêncio. Quando falou, foi categórica: “A-do-rei!”.

        Beatriz esperou pelos atores ao final da peça para cumprimenta-los e ficou sabendo que até pessoas famosas podem começar tarde suas incursões pela dramaturgia. "Eu só fui ao teatro depois dos 20 anos”, contou Vera Holtz.

        TELEVISÃO O estudante de eletrônica básica Sidnei Nunes Cardoso morou, por quase dois anos, a pouco minutos de várias salas de cinema, no Morumbi, quando seu padrasto era zelador de um prédio. Ainda assim, nunca lhe ocorreu entrar em uma sala de exibição. Atualmente, ele mora com a mãe e dois irmãos, de 19 e 8 anos, em Embu, mas se desloca praticamente todos os dias para São Paulo.

        “O problema não é a distância, a questão é que eu não me acostumei a sair da minha casa para ver filmes”, disse. “As pessoas com quem eu converso não pensam muito em ir ao cinema, por isso quando quero assistir a algum filme ligo a televisão e pronto.

        Mas acompanhando as aventuras de um grupo de cientistas que estudam tornados no filme Twister, Sidnei descobriu outras possibilidades. Ao final da exibição, ele só queria saber quanto custava a entrada, onde havia outras salas e como deveria procurar, em jornais, a lista dos filmes em cartaz. Algumas coisas ele já sabia. “Desconfiava que iam apagar a luz e os atores falavam em outra língua.” (G. L.).

O Estado de São Paulo, 28 jul. 1996.

            Fonte: Português – Linguagem & Participação, 8ª Série – MESQUITA, Roberto Melo / Martos, Cloder Rivas – 2ª edição – 1999 – Ed. Saraiva, p. 08-11.

Entendendo a reportagem:

01 – De acordo com o texto, qual o significado das palavras abaixo:

·        Concluiu: chegou ao final de um raciocínio.

·        Constatar: perceber.

·        Corriqueiras: comuns, cotidianas.

·        Metrópoles: grandes cidades.

·        Inéditas: ainda não realizadas.

·        Desígnios: desejos.

·        Protagonizada: vivida, representada.

·        Expectativa: aguardo de alguma coisa que está para acontecer.

·        Postura racional: atitude de acordo com a razão.

·        Dramaturgia: arte dramática ou de compor peças teatrais.

·        Tornados: turbilhões de vento, quase sempre intensos e destrutivos.

02 – Qual o assunto do texto?

      Convidados por jornalistas, três jovens passam por experiências inéditas.

03 – O que as personagens apresentam em comum?

      São jovens adolescentes que moram na periferia de São Paulo e são trabalhadores. Todos os três estão vivendo pela primeira vez uma experiência de lazer.

04 – Como você entendeu o segundo parágrafo do texto?

      Muitos jovens moradores de São Paulo ainda não viveram experiências que são comuns para outras pessoas.

05 – Como foi a experiência de ver o mar para Regina dos Santos? Quais foram os sentimentos que ela experimentou?

      Foi uma experiência emocionante. Ela sentiu medo, alegria, espanto.

06 – O que a leitura nos permite saber sobre Regina dos Santos?

      É uma moça casada e cheia de sonhos, mãe de um bebê. Tem certa dificuldade em orientar-se no espaço físico. Trabalha muito e é ambiciosa.

07 – Como foi para Beatriz Cristina Guerato a experiência de assistir à primeira peça? Quais foram as emoções que ela experimentou?

      Ela sentiu frio na barriga e gostou muito da peça.

08 – O convite dos jornalistas propiciou grandes surpresas aos jovens. Aponte o que surpreendeu cada um deles de modo especial.

      Regina: a extensão do mar; Beatriz: a descoberta de que mesmo pessoas famosas podem ter tido contato tardio com a dramaturgia; Sidnei: a constatação de que a tela do cinema é dezenas de vezes maior que a de uma televisão; Fábio: a descoberta da variedade de produtos oferecidos em um shopping.

09 – Releia os dois parágrafos do texto. Qual o tempo verbal predominante em cada um? Por que foram feitas essas escolhas?

      1° parágrafo: pretérito perfeito do indicativo, adequado para narrar ações já realizadas pelas personagens;

      2° parágrafo: presente do indicativo, próprio para falar de ações habituais no presente dos paulistanos em geral.