Romance: A cidade e as serras –
Fragmento
Eça
de Queirós
I
O meu amigo Jacinto nasceu num palácio,
com cento e nove contos de renda em terras de semeadura, de vinhedo, de cortiça
e de olival.
Fonte: https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi0Buu7RYYVabZQesSo01v72_sbMa4nZSZNaDvCDhPAJ_By_AmWq06cGHgjrB3a2DK-A8sWCyI7Wat9BRsaFOd2-oGx9M1vKjBKzOJHFSY4SBh8gsnVeUgtNkU8ECDOsay3ng93CvM7M-yFj3ZhpPoUuo-OqLK3A0d_Ug3uw-q30qvKd_TVRSCy5wzwPsw/s320/SERRAS.jpg
No Alentejo, pela Estremadura, através
das duas Beiras, densas sebes ondulando pôr e vale, muros altos de boa pedra,
ribeiras, estradas, delimitavam os campos desta velha família agrícola que já
entulhava o grão e plantava cepa em tempos de el-rei d.Dinis. A sua Quinta e
casa senhorial de Tormes, no Baixo douro, cobriam uma serra. [...] Mas o
palácio onde Jacinto nascera, e onde sempre habitara, era em Paris, nos Campos
Elísios, nº 202. [...]
Jacinto e eu, José Fernandes, ambos nos
encontramos e acamaradamos em Paris, nas Escolas do Bairro Latino [...].
Ora nesse tempo Jacinto concebera [...]
a ideia de que o “homem só é superiormente feliz quando é superiormente
civilizado”. E pôr homem civilizado o meu camarada entendia aquele que,
robustecendo a sua força pensante com todas as noções adquiridas desde
Aristóteles, e multiplicando a potência corporal dos seus órgãos com todos os
mecanismos inventados [...] apto portanto a recolher dentro de uma sociedade, e
nos limites do Progresso (tal como ele se comportava em 1875) todos os gozos e
todos os proveitos que resultam de Saber e Poder... [...]
Pôr uma conclusão bem natural, a ideia
de Civilização, para Jacinto, não se separava da imagem de Cidade, duma enorme
Cidade, com todos os seus vastos órgãos funcionando poderosamente. Nem este meu
supercivilizado amigo compreendia que longe de armazéns servidos pôr três mil
caixeiros; e de Mercados onde se despejam os vergéis e lezírias de trinta
províncias; e de Bancos em que retine o ouro universal; e de Fábricas fumegando
com ânsia, inventando com ânsia; e de Bibliotecas abarrotadas, a estalar, com a
papelada dos séculos; e de fundas milhas de ruas, cortadas, pôr baixo e pôr
cima, de fios de telégrafos, de fios de telefones, de canos de gases, de canos
de fezes; e da fila atroante dos ônibus, tramas, carroças, velocípedes,
calhambeques, parelhas de luxo; e de dois milhões duma vaga humanidade,
fervilhando, a ofegar, através da Polícia, na busca dura do pão ou sob a ilusão
do gozo – o homem do século XIX pudesse saborear, plenamente, a delícia de
viver! [...].
Ao contrário no campo, entre a
inconsciência e a impassibilidade da Natureza, ele tremia com o terror da sua
fragilidade e da sua solidão [...]. Depois, em meio da Natureza, ele assistia à
súbita e humilhante inutilização de todas as suas faculdades superiores. De que
servia, entre plantas e bichos – ser um Gênio ou ser um Santo?
II
Era de novo fevereiro, e um fim de
tarde arrepiado e cinzento, quando eu desci os Campos Elísios em demanda do
202. Adiante de mim caminhava, levemente curvado, um homem que, desde as botas
rebrilhantes até às abas recurvas do chapéu de onde fugiam anéis dum cabelo
crespo, ressumava elegância e a familiaridade das coisas finas. [...] E só
quando ele parou ao portão do 202 reconheci o nariz afilado, os fios do bigode
corredios e sedosos.
-- Ó Jacinto!
-- Ó Zé Fernandes! [...]
-- Há sete anos!...
E, todavia, nada mudara durante esses
sete anos no jardim do 202! [...]
Mas dentro, no peristilo, logo me
surpreendeu um elevador instalado pôr Jacinto[...]. Um criado, mais atento ao
termômetro que um piloto à agulha, regulava destramente a boca dourada do
calorífero. E perfumadores entre palmeiras, como num terraço santo de Benares,
esparziam um vapor, aromatizando e salutarmente umedecendo aquele ar delicado e
superfino.
Eu murmurei, nas profundidades do meu
assombrado ser:
-- Eis a Civilização!
[...].
III
[Nós] saíamos depois do almoço, a pé,
através de Paris. Estes lentos e errantes passeios eram outrora, na nossa idade
de Estudantes, um gozo muito querido de Jacinto – porque neles mais
intensamente e mais minuciosamente saboreava a Cidade. Agora, porém, apesar da
minha companhia, só lhe davam uma impaciência e uma fadiga que desoladamente
destoava do antigo, iluminado êxtase. Com espanto (mesmo com dor, porque sou
bom, e sempre me entristece o desmoronar duma crença) descobri eu, na primeira
tarde em que descemos aos Boulevards, que o denso formigueiro humano sobre o
asfalto, e a torrente sombria dos trens sobre o macadame, afligiam meu amigo
pela brutalidade da sua pressa, do seu egoísmo, e do seu estridor. [...]
-- Não vale a pena, Zé Fernandes. Há
uma imensa pobreza e secura de invenção! Sempre os mesmos florões Luís XV,
sempre as mesmas pelúcias... Não vale a pena!
Eu arregalava os olhos para este
transformado Jacinto. [...].
IV
[...] [Recebeu] o meu Príncipe
inesperadamente, de Portugal, uma nova considerável. Sobre a sua Quinta e solar
de Tormes, pôr toda a serra, passara uma tormenta devastadora de vento, corisco e água. Com as
grossas chuvas [...], um pedaço de monte, que se avançava em socalco sobre o
vale da Carriça, desabara, arrastando a velha igreja, uma igrejinha rústica do
século XVI, onde jaziam sepultados os avós de Jacinto desde os tempos de el-rei
D. Manuel. [...]
Jacinto empalidecera, impressionado.
Esse velho solo serrano, tão rijo e firme desde os Godos, que de repente ruía!
Esses jazigos de paz piedosa, precipitados com fragor, na borrasca e na treva,
para um negro fundo de vale! Essas ossadas, que todas conservavam um nome, uma
data, uma história, confundidas num lixo de ruína! [...]
E telegrafou ao Silvério que
desatulhasse o vale, recolhesse as ossadas, reedificasse a Igreja, e para esta
obra de piedade e reverência, gastasse o dinheiro, sem contar, como a água dum
rio largo.
[...]
VIII
Ao fim desse Inverno escuro e
pessimista [...], Jacinto assomou à porta do meu quarto [...], deixou desabar
sobre mim esta declaração formidável:
-- Zé Fernandes, vou partir para
Tormes. [...]
-- Para Tormes? Ó Jacinto, quem
assassinaste?...
[...] O Príncipe da Grã-Ventura tirou
da algibeira uma carta [...]
-- “Ilmº e Exmº sr. – Tenho grande satisfação em
comunicar a V.Exª que toda esta semana devem ficar prontas as obras da
capela...[...]. Os venerandos restos dos excelsos avós de V. Exª., senhores de
todo o meu respeito, podem pois ser em breve trasladados da igreja de S José,
onde têm estado depositados pôr bondade do nosso Abade, que muito se recomenda
a V.Exª... Submisso aguardo as prestantes ordens de V.Exª a respeito desta
majestosa e aflitiva cerimônia...” [...]
-- Ah! bem! Queres ir assistir à
trasladação.... Jacinto sumiu a carta no bolso.
-- Pois não te parece, Zé Fernandes?
Não é pôr causa dos outros avós, que são vagos, e que eu não conheci. É pôr
causa do avô Galião... Também não o conheci. Mas este 202 está cheio dele; tu
estás deitado na cama dele; eu ainda uso o relógio dele. Não posso abandonar ao
Silvério e aos caseiros o cuidado de o instalarem no seu jazigo novo. Há aqui
um escrúpulo de decência, de elegância moral... Enfim, decidi. Apertei os
punhos na cabeça, e gritei – vou a Tormes! E vou!... E tu vens! [...]
[...] Logo depois de atravessarmos uma
trêmula ponte de pau, sobre um riacho quebrado por pedregulhos, o meu Príncipe,
com o olho de dono subitamente aguçado, notou a robustez e a fartura das
oliveiras... – E em breve os nossos males [da viagem] esqueceram ante a
incomparável beleza daquela serra bendita!
XV
E agora, entre roseiras que rebentam, e
vinhas que se vindimam, já cinco anos passaram sobre Tormes e a Serra. O meu
Príncipe já não é o último Jacinto, Jacinto ponto final – porque naquele solar
que decaíra, correm agora, com soberba vida, uma gorda e vermelha Teresinha,
minha afilhada, e um Jacintinho, senhor muito da minha amizade. [...] Quando
ele agora, bom sabedor das coisas da lavoura, percorria comigo a Quinta, em
sólidas palestras agrícolas, prudentes e sem quimeras – eu quase lamentava esse
outro Jacinto que colhia uma teoria em cada ramo de árvore, e riscando o ar com
a bengala, planejava queijeiras de cristal e porcelana, para fabricar
queijinhos que custariam duzentos mil-réis cada um! [...]
Visitara já as suas propriedades de
Montemor, da Beira; e consertava, mobiliava as velhas casas dessas propriedades
para que os seus filhos, mais tarde, crescidos, encontrassem “ninhos feitos”.
Mas onde eu reconheci que definitivamente um perfeito e ditoso equilíbrio se
estabelecera na alma do meu Príncipe, foi quando ele, já saído daquele primeiro
e ardente fanatismo da Simplicidade – entreabriu a porta de Tormes à Civilização.
[...] Aparecera, vindo de Lisboa, um contramestre, com operários, e mais
caixotes, para instalar um telefone!
-- Um telefone, em Tormes, Jacinto? O
meu Príncipe explicou, com humildade: -- Para casa de meu sogro!... bem vês.
Era razoável e carinhoso. O telefone,
porém, sutilmente, [...], estendeu outro longo fio, para Valverde. E Jacinto,
alargando os braços, quase suplicante:
-- Para casa do médico. Compreendes...
Era prudente. Mas, certa manhã, em
Guiães, acordei aos berros da tia Vicência! Um homem chegara, misterioso, com
outros homens, trazendo arame, para instalar na nossa casa o novo invento.
[...]. Mas corri a Tormes. Jacinto sorriu, encolhendo os ombros:
-- Que queres? Em Guiães está o
boticário, está o carniceiro... E, depois, estás tu!
[...] O Progresso, que, à intimação de
Jacinto, subira a Tormes a estabelecer aquela sua maravilha, pensando talvez
que conquistara mais um reino para desfear, desceu, silenciosamente,
desiludido, e não avistamos mais sobre a serra a sua hirta sombra cor de ferro
e de fuligem. Então compreendi que, verdadeiramente, na alma de Jacinto se
estabelecera o equilíbrio da vida, e com ele a Grã-Ventura, de que tanto tempo
ele fora o Príncipe sem Principado.
[...].
QUEIRÓS, Eça de. A
cidade e as serras. São Paulo: Babel, 2012. p. 29-30, 30-36, 39, 43, 44, 47,
48, 65,112, 174, 175, 207, 34.
Fonte: Linguagens em
Interação – Língua Portuguesa – Ensino Médio – Volume Único – Juliana Vegas
Chinaglia – 1ª edição, São Paulo, 2020 – IBEP – p. 191-194.
Entendendo o romance:
01
– Qual é a origem social de Jacinto?
Jacinto nasceu em uma
família rica, proprietária de vastas terras agrícolas em várias regiões de
Portugal, incluindo Alentejo, Estremadura e Beiras. Sua família já possuía
essas terras desde os tempos do rei D. Dinis.
02
– Onde Jacinto passou a maior parte de sua vida?
Jacinto passou a
maior parte de sua vida em um palácio em Paris, nos Campos Elísios, nº 202.
03
– Qual era a visão inicial de Jacinto sobre a felicidade?
Jacinto
acreditava que a felicidade superior só podia ser alcançada por um homem
superiormente civilizado, ou seja, alguém que acumulasse todo o conhecimento
disponível e utilizasse todos os avanços tecnológicos.
04
– Como Jacinto associava a civilização com a cidade?
Para Jacinto, a civilização
estava intrinsecamente ligada à vida na cidade, onde os mecanismos do
progresso, como mercados, bancos, fábricas, bibliotecas e infraestruturas
modernas, estavam em pleno funcionamento.
05
– Qual era a relação de Jacinto com a natureza no início do romance?
Jacinto se sentia
desconfortável na natureza, vendo-a como um ambiente onde suas capacidades
superiores se tornavam inúteis, e onde ele se sentia isolado e frágil.
06
– Como Jacinto reagiu à notícia da destruição da capela de sua família em
Tormes?
Jacinto ficou
profundamente abalado com a destruição da capela e dos túmulos de seus
antepassados e imediatamente ordenou que as obras de reconstrução fossem
realizadas, mostrando um senso de responsabilidade e reverência pela memória de
sua família.
07
– O que levou Jacinto a decidir visitar Tormes?
Jacinto decidiu
visitar Tormes para supervisionar pessoalmente a trasladação dos restos mortais
de seus avós para a capela reconstruída, motivado por um senso de decência e
elegância moral.
08
– Como Jacinto mudou sua percepção da vida na cidade ao longo do tempo?
Jacinto começou a
sentir-se desiludido com a vida na cidade, percebendo a brutalidade e a
repetição monótona do progresso urbano, o que contrastava com sua antiga
adoração pela civilização urbana.
09
– Como Jacinto encontrou equilíbrio entre a vida na cidade e no campo?
Jacinto encontrou
equilíbrio ao aceitar alguns aspectos do progresso (como o telefone) em Tormes,
mas sem permitir que a civilização urbana invadisse completamente sua vida
rural. Ele adotou uma vida simples e focada na natureza, mas com toques de
modernidade que considerava úteis.
10
– Qual foi o resultado final da transformação de Jacinto em Tormes?
Jacinto alcançou
um equilíbrio harmonioso entre a vida simples do campo e os confortos da
civilização, tornando-se um homem feliz e realizado, ao contrário do que era em
Paris, onde era o "Príncipe sem Principado".